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A nossa modéstia

publicado: 13/05/2024 09h38, última modificação: 13/05/2024 09h38

por Gonzaga Rodrigues*

Chega o táxi e abrem-me a porta: Bom dia!

Um motorista com gestos de recepcionista pergunta qual o destino.

- APL, Academia.

Percebi que não lhe tinha caído a ficha. Troquei, então, para São Francisco, a vizinha Igreja de São Francisco. O homem continuou na mesma, o olhar de quem procurava o que não sabia. Entendi logo, amarrei-me ao cinto e resolvi guiá-lo. Ele muito afável, com jeito de quem pedia desculpas.

- É daqui?

- Não, sior, sou de São Paulo. Estou aqui há poucos dias.

Esperei que, por si mesmo, adiantasse mais alguma coisa, entrasse nos motivos que o trouxeram a João Pessoa, contendo-me para não falar nas migrações naturais provocadas pelo desemprego.

Apanhando o carro nos Expedicionários, sugeri que evitasse a Epitácio e dobrasse, mais na frente, pela Rio Grande do Sul, uma tornada mais tranquila para quem deseja fugir do congestionamento e alcançar a cidade velha. Meu caminho quando ainda dirijo.

Educado, simpático, ele desculpava-se por estar me fazendo de guia e explicou-se: perdeu o emprego numa revendedora de automóveis e, com o afastamento do mercado, fugiu dele, convertendo o carro particular em táxi, escolhendo um novo meio de vida e uma cidade mais tranquila para trabalhar.

- E quem lhe disse que isto aqui estava tranquilo?

-  E não está?! – redarguiu espantado.

Lembrei-me do pavor que senti numa das minhas últimas passagens pelo Rio, saindo de carona amiga da Ilha do Governador para o centro histórico. Dando graças a Deus, respirando um pouco, quando o tráfego congestionava e, por instantes, não me via lançado indefeso no comboio colado de carros, um chispando no outro. Para muitos desses imigrantes o sufoco da nossa Epitácio é realmente um desafogo. Como ele reparou, não é preciso madrugar para chegar às oito horas no trabalho. Tudo ainda fica mais perto em quilômetro e em tempo de trânsito.

Entendi logo, amarrei-me ao cinto e resolvi guiá-lo. Ele muito afável, com jeito de quem pedia desculpas   --   Gonzaga Rodrigues

- Aqui à esquerda, por favor.

Mostrei-lhe, ao lado, já diante do adro, a mais importante referência da cidade: “Quando lhe falarem em São Francisco, é isto aqui. É uma das igrejas mais bonitas do Brasil”. Ele acreditou, estacionou mais à frente e foi conferir. E fiquei em dúvida se fiz certo, se não lhe furtei o tempo de outra corrida. Suponho que não, o calcário do cruzeiro com seus pelicanos de volta à cor original, as laterais se alvejando, além da presença de grupos visitantes desembarcados da fila de ônibus estacionada à margem do adro.

São Francisco não entra apenas na conta do turismo religioso. É único em sua singularidade do Barroco. Em sua fidelidade aos quatrocentos anos de modéstia econômica da Paraíba e, em particular, ao comportamento do meio cultural e de boa parte dos seus componentes.  Não há nada mais modesto do que a Academia Paraibana de Letras, casa dedicada à consagração dos nossos escritores, artistas e cientistas. Salvo engano, chama a atenção dos que diariamente a visitam certamente por isto. Descem na calçada de São Francisco e de volta avistam a placa da imortalidade numa pequena casa antiga de rua decadente. O taxista paulistano bem-acomodado em nosso trânsito vai levar tempo em se acomodar à nossa modéstia.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 12 de maio de 2024.