Escrivão de polícia durante cinco anos, nas horas desocupadas, que não eram muitas, deixava-me ficar na Praça Rio Branco, um aconchego de sombras que ornava a antiga prefeitura, a contrastar com a cara de poucos amigos e aquela importância exagerada do barão em sua estátua. Estátua perfeita como eram as antigas, feitas até ali com o olhar em Roma ou na Grécia. Clássicas como era ainda o ideal de todas as artes entre nós, provincianos. Do tamanho que é a praça, era e continua o entrançado de copas com que uma mão anônima e benfazeja já anunciava a predestinação ambiental da cidade.
Mas o barão, com aquela cara, não me inspirava nenhuma simpatia. Já o achava um porre, sobretudo nos minutos vagos e incertos em que me debruçava à janela da delegacia em frente, no enfado do trabalho. Um trabalho como outro qualquer, mas de clima quase sempre constrangedor. E vinha respirar a natureza da praça num tempo em que dava para ouvir e até se incomodar com o arrulho dos pombos, seus naturais frequentadores.
Sem querer, desprevenido às vezes, batia de testa, quer dizer, com os olhos naquele busto de uma das figuras mais importantes dos tempos imperiais. Em vão me acorriam aqueles retalhos de história de sua intervenção no Acre, nas Guianas, na diplomacia de questões continentais que envolviam a Coroa brasileira.
O culto ao herói que o busto exagerou em arrogância e majestade me conduzia, ainda não sei por que, a festejar a obra dos passarinhos. A testa que se perdia lá por trás, o bigode avultado... era raro o dia que não amanhecessem breados pela passarinhada. Um pouco depois, lendo a crônica de Lima Barreto, lamentei que o mestiço genial não chegasse a ver a mesma festa da passarinhada e das moscas do meu mirante. Debalde vim ler depois as “Efemérides” famosas na biblioteca da nossa Academia.
Mas tudo tem seu dia. Tirando os pés da terra, apanhei a primorosa antologia da literatura brasileira feita por Marques Rebelo, reli o soneto maior de Carlos Pena Filho, simplesmente “Soneto”, revi a “Luciana”de Schimidt, e saí folheando até bater, com inegável surpresa, numa carta do barão ao imperador já destronado. Na solidão do exílio e havendo recusado qualquer favor do Estado brasileiro, D. Pedro de Alcântara deve ter guardado até o fim dos seus dias estas linhas de exceção, talvez únicas naquela circunstância, recolhidas na biografia premiada que lhe dedicou o estreante Álvaro Lins.
“Senhor. / Estas linhas chegarão às mãos de Vossa Majestade Imperial amanhã, 23 de julho, dia em que os brasileiros contavam poder celebrar este ano o jubileu do glorioso e fecundo reinado de Vossa Majestade. / Peço licença para beijar respeitosamente a mão de Vossa Majestade Imperial, e sinto imenso não poder fazê-lo pessoalmente. As ingratidões do período agitado que atravessamos hão de passar. (...) Na nossa História, quando a pudermos ter imparcial e livre, não haverá nome que possa igualar em grandeza o do Soberano ilustre que durante quase meio século presidiu aos destinos da Nação Brasileira, dando-lhe (...) um governo liberal e honesto. / Tenho a honra de ser, com o mais profundo respeito / De Vossa Majestade Imperial / súdito humilde e agradecido. / Barão do Rio Branco”.
Xô, passarinhos!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 9 de novembro de 2025.