A cidade ainda não acordou. Atrás de mim, pelo retrovisor, isenta e limpa de tráfego, a avenida Epitácio assume uma imponência que o sol da manhã só faz coroar. Sou motivado a deixar o carro e curtir minha surpresa pelo ângulo do canteiro central. Assim, sem ninguém, absoluta em sua quietude de asfalto, eu nunca fizera ideia. Morando perto há décadas, vivendo o mesmo amanhecer, nunca havia reparado com esse olhar. A avenida deserta e por isso mesmo plena, absoluta, roubando a presença dos demais componentes urbanos.
O asfalto, em alguns trechos, falta pouco para nivelar com o meio-fio. São sessenta anos de sucessivos revestimentos. Sessenta anos do automóvel dos Ribeiros, dos Soares de Oliveira, dos João Minervino, dos Duré, de alguns Cunha, de raros médicos e advogados famosos, para o meio milhão de veículos de hoje. E já que tudo que não presta, na onda de hoje, se atribui a Lula, credite-se a ele a vulgarização do carro.
“Seu Luiz?!”- foi Da Luz, nossa antiga empregada, que Deus a tenha: “Eu queria que o Sr. avalizasse o carro de Dedé”. / “E o que Dedé faz, dona Da Luz/!”/ “Meu marido já é oficial de pedreiro, não é mais ajudante, não bate mais caliça.”
E me ocorreu, entre um gole e outro do café, a luta penosa de Linduarte Noronha com seu Prefect de 1948, trocado depois por uma lambreta de segunda mão ou vice-versa, da lambreta é que deve ter alçado ao carro.
"Não dá meia hora, começa a Epitácio a pegar carrego, a sumir sob o vagalhão fechado de capotas" --- Gonzaga Rodrigues
Era um carrinho de nada (quem se lembra, não há mais quem se lembre!) tendo como concorrente o Ânglia. Na Índio Piragibe, onde o gordo Linduarte morava, não era difícil você encontrar o carrinho desmanchado, o radialista, jornalista e pioneiro da coluna paraibana de cinema todo breado de óleo, perdido entre as peças.
“Vai longe, ele, Linduarte?” / “Depois que pavimentaram a Epitácio, não mede distância. Muitas vezes enfrento a madrugada. Tranquilo”.
Não dá meia hora, começa a Epitácio a pegar carrego, a sumir sob o vagalhão fechado de capotas, debaixo das quais não se distingue entre homens e motores.
Chego em tempo de alcançar o meu, botar o cinto e girar a chave, mas aí vem o guarda, num tempo em que não há mais guarda ou policiais ostensivos e, da moto mesmo, me adverte sobre o estacionamento proibido. Penitenciei-me, falei que foi por instante, um instante de contemplação e homenagem à avenida que vi receber seu primeiro pavimento, cuja notícia revisei numa madrugada de 1952 acompanhado de Carlos Augusto de Carvalho, meu companheiro de Casa do Estudante, juntamente com Oswaldo Duda Ferreira e José Barbosa de Souza Lima. O estômago reagindo ao pão que o ranço da manteiga mais estragava.
Setenta anos afastado dessas lembranças, por que elas me ocorrem tão inoportunas?
Cedo da manhã a caminho do laboratório, o sol mal despontando para os lados do Grupamento, sol ainda nado na linguagem dos velhos portugueses, o vazio do asfalto acha de me restituir a instantes que pareciam tão diminutos!
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 07 de janeiro de 2024.