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Cinzas do São João

publicado: 08/07/2024 10h30, última modificação: 08/07/2024 10h30

por Gonzaga Rodrigues*

Para os da minha geração, a tendência mesmo é nos deixarem sem nada. Ainda me banho de poder usar o pronome num plural acanhado graças à sobrevivência de uns pouco iguais na idade ou de contemporâneos aproximados, uns reclamando menos, outros mais, todos, porém, sem graça, no prejuízo dos seus mais enraizados costumes, devoções e lazeres.

Na última quinta-feira, o presidente que vem sendo merecidamente aclamando para continuar à frente da nossa Academia de Letras, cronista e historiador Ramalho Leite, faz coro em artigo n’A União à crítica de uma autêntica como Elba Ramalho à invasão da chamada música sertaneja com suas agressivas agências de marketing a invadir os palcos nordestinos, passando para trás a música de raízes culturais consagradas no íntimo do seu povo. O povo não protesta, mesmo que se descobrisse lesado, submisso diariamente ao que propaga ou ensina a televisão formadora de opinião de todos os nossos lares.

Entre nós, a contrafação não é nova. Desde que se armou um palco dimensionado para a promoção turística de Campina Grande que as fogueiras começaram a ser apagadas sob alegação de que as chamas, a fumaça, as fagulhas ardiam nos olhos ultrassensíveis da elite de cabeça globalizada. O São João de fogueira haveria de terminar como argueiro nos olhos dos nossos legisladores e dirigentes já dissociados ou desarraigados da mais viva e alegre das nossas devoções. Fogueira que fazia padrinhos e afilhados ou que a fé ou o fervor por ela nos faziam pisar em brasa sem sairmos queimados.

O São João de fogueira haveria de terminar como argueiro nos olhos dos nossos legisladores e dirigentes   --   Gonzaga Rodrigues

Até bem pouco tempo, e creio que inda hoje, a festa religiosa que mais repercute na alma nordestina continua sendo a dos santos de junho, encabeçados por João Batista.  A fogueira no terreiro de casa, ainda que a gente ao redor não atinasse, era  a mesma pela qual Promoteu pagou caro no suplício do rochedo para resguardar os humanos no abrigo da caverna.

Proibida por lei, só nos restam as bandeirinhas, a quadrilha, a comida típica desfalcada do clima de culinária festiva ora convertida em produto diário de padaria, sem a alegre comunhão familiar e amiga em torno do moinho, da peneira ou do caldeirão que hoje se adultera dando nome a programas em tudo estranhos a esse batismo.

Não muito longe, enquanto pude morar em casa de rés ou rente com o chão, a festa do milho era uma alegria com gosto de felicidade, pela união espontânea da casa inteira e dos seus arredores, tudo sob a regência da colher de pau de Dona Edith.

Não sei como uma manifestação de fundo religioso, latente em todos nós, de Cajazeiras a Cabedelo, possa ser proscrita. Por causa do busca-pé?  Do foguetão em casa de palha? Em nenhum dos nossos subúrbios sobrevive a casa de palha. Não há mais palmeiras para isso, substituídas pelas sobras de zinco ou placas de fábricas fechadas.

 *Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 07 de julho de 2024.