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Das dobras do aço ao infinito

publicado: 17/04/2023 10h01, última modificação: 17/04/2023 10h02

por Gonzaga Rodrigues*

Em “Mar do olhar” vem esta dedicatória de Juca Pontes ao amigo-irmão Milton Nóbrega: “Para Milton Nóbrega, amigo-irmão, com quem aprendi a enxergar o mundo com as cores do infinito.”

Com meu tanto no ramo gráfico, acompanhei essa harmoniosa parceria. Com inveja, às vezes, não da harmonia,como desse infinito que eles juntos enxergavam. O que não chegava a um chegava ao outro. E se completavam, contrariando aquela ansiedade sem fim feliz do negro Cruz e Souza: “E quanto mais pelo Infinito cava / mais o infinito se transforma em larva / e o cavador se perde nas distâncias...”

Dos meus pobres livros, o mais bem vestido é “Um sítio que anda comigo”, cortado e costurado por Milton Nóbrega, de presença indiscutível na história gráfica e da programação visual em geral, a partir dos anos Setenta. Juca programava e editava a cartilha com que Giselda Navarro pretendia regionalizar o conteúdo do livro escolar infantil que as editoras nacionais impunham às crianças das mais diferentes regiões. Trocar a maçã argentina pelos araçás dos nossos sítios e quintais. E foi aí, que me lembre, por onde Juca deve ter surgido, aliado a Milton, que viera da Ancar (Emater) onde ilustrava cartilha ensinando e animando os meninos do mato a comer tomate, folhas e muita fruta. Foi onde descobri as artes de Milton e me arriei por elas.

Juca veio me aparecer na hora do fotolito. Tinha feito uma leitura rápida do meu livro e veio com esta: “Bacana, mas que tal umas figurinhas de meninos pelados trazendo para a capa o miolo do livro?”. 

E aí vem Marlene Almeida, logo sugerida por Milton, com o infinito de onde despontam três crianças do mato, a barra verde-escuro sublinhando o sítio que o livro escondia na maioria de suas páginas. “Bacana!”- foi o imprimatur.

A participação desses dois paraibanos na evolução gráfica, sobretudo estética do livro tem o reconhecimento de todos do ramo. O meu se faz obrigatório, não só pela admiração como pela minha própria experiência, seduzido pelo magnetismo da vivência no jornal e editora A União, mantidos com exemplar coerência histórica. Esse infinito vislumbrado pelos olhos do poeta que acaba de nos deixar cai bem, e muito bem, nos produtos que a ambientação do antigo palácio de Carlos Dias e Juarez Batista nos reservara. Infinitos sonhos e produtos, imunes ao trator que triturou o velho palácio com seus balcões entre colunas neoclássicas, dando, de fato, para o  mirante onde vem se situar o olhar de Juca.

Estou em 1952, perdido entre máquinas e homens da grande oficina escura recendendo querosene. Máquinas de teclado com um poço de chumbo fervendo a 320 graus, máquinas de imprimir, máquina de gravar... e esbarro vendo um senhor de óculos na ponta do nariz, a calva brilhando, a compor e recompor a chapa da primeira capa de um livro. Chapa de ferro, tipos de ferro, linhas e espaços de ferro, tudo indúctil, rijo, inflexível. E o homem querendo dobrar esse impossível. Pode?

Ele me responde: “Para isso existe a divina proporção. O ferro não cede, não dobra, mas a imaginação pode mais que ele. E há uma regra clássica, pelo menos para a página que vamos montar: sentado o título na linha do primeiro terço, o resto é com você. As possibilidades são infinitas, depende de seu voo.”

Ou de ser um Juca ou um Milton, sem os limites de ferro e aço dobrados pelas artes do velho Waldemar Nicolau.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 16 de abril de 2023.