O dorso magrinho e sumido de um livro entre dezenas da estante a um canto da recepção de um consultório me desconcentra do que possa resultar, daí a pouco, da consulta. Começo a distinguir, de alguma distância e já meio desbotado, um episódio bem particular do meu trajeto.
Sem ter a quem pedir licença, e também sem ser notado, fui lá e, num fechar de olhos, me vi em 1978, na tarde friorenta, subindo a pé uma ladeira de Santos, São Paulo, em companhia de Carlos Roberto de Oliveira, ambos no encalço da autorização de um filho herdeiro de Álvaro de Carvalho para reeditarmos “Nas vésperas da revolução”, primeiro livro da editora que estávamos fundando com outro sócio, Nathanael, a Acauã. O primeiro, sim, porque o que o antecedera fora apenas teste, as “Notas do meu lugar”, de lançamento bem concorrido, mas de venda demorada, quarenta anos para se dar por esgotado.
Essa editora foi a minha única aventura capitalista, minha e de Nathanael Alves, de sociedade fermentada pelo espírito aventuroso de Carlos, de origem tão modesta quanto a nossa, mas não vendo muita distância em pular do chão do empregado para o andar do empregador. A pretensão não era pequena, visava o Nordeste, elegendo autores sem fronteiras na região. Fomos inicialmente a Ariano Suassuna, que nos animou lamentando já ter confiado seu último trabalho aos prelos da José Olympio.
"Essa editora foi a minha única aventura capitalista, minha e de Nathanael Alves"
Gonzaga Rodrigues
E nos veio a ideia, ali mesmo, atiçada pela conversa do próprio Ariano sobre os homens de 1930, de se reeditar o único de vivência política acidental, de um escritor de pretensões apenas literárias, com seus ensaios, alguns minados de veios filosóficos, enfim, um professor que se bastava e se notabilizava no seu ofício.
E de uma dignidade que dispensa muita incursão biográfica, só por um simples detalhe avultado na leitura de “O Ano do Nego” de José Américo. “Nego” ao qual, mesmo como sucessor de João Pessoa no governo, Álvaro de Carvalho se opôs a que fosse inscrito como divisa da bandeira. Nada contra as cores, “mas pelo que denotava ou sugeria de negativo” – ouvi, um dia, do velho Benevides, conviva loquaz do “senadinho” de Chico Souto, onde se aninhava o saldo remanescente de seus amigos da Assembleia e do jornalismo. Consulado de Esperança, sua boa terra.
A cidade de 1930 – é o foco do livro - terreiro de tenentes e chefes revolucionários, um centro febril de conspirações, praça de guerra, tendo o professor Álvaro, um pacifista, na suprema magistratura, ele que fora escolhido nessa condição como vice, sucessor do guerreiro. Mas não querendo ser mais do que professor, mesmo na cadeira de primeiro magistrado.
E de livrinho na mão, quase um século depois, o que mais além de todos os seus títulos e ascensões? O que sobressai narrado por outro, o autor de “O ano do Nego”, José Américo: “No dia seguinte – dia em que os vitoriosos o subtraíram do poder – o professor Álvaro saiu a pé e foi dar sua aula no Liceu”.
Desceu as escadas do palácio sem perder um palmo da conduta de toda a vida, retomando, na postura de sempre, os degraus do Liceu. Era de outra espécie – escrevi, há anos, lembrando-me de um asterisco que chamava para a surpresa de Ménon ou outro discípulo de Sócrates ao surpreendê-lo numa de suas refeições: “Como o senhor passa mal, mestre!” E Sócrates: “Que diacho, e eu não sabia.”
*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 05 de março de 2023.