O busto do presidente Camilo de Holanda, no final das Trincheiras, foi arrancado do pedestal. Não soube pelo rádio, não li no jornal e menos ainda nas redes sociais. Faz isso uns cinco anos. Notei de relance ao passar pelos restos mortais de um dos postais que anunciavam a quem viesse do sul “a cidade mais vegetal do que urbana” assim estampada pelo paisagista mais fiel das nossas letras. Desrespeitei a norma e estacionei na calçada oposta para verificar de perto, à luz dos meus olhos e ao roçar dos meus dedos, a impotência das instituições do patrimônio cultural e histórico para defender-se e defendê-lo do desajuste extremado entre o quinhão que tem por que zelar e a massa bruta (porque nunca foi tratada) que não sabe o que vai comer no dia seguinte.
Historicamente, todos temos culpa. Desde quando, na prática, no efetivo, motivamos “as classes baixas” (esta tem sido a nossa linguagem) a respeitar os dignos de estátua? Até um certo tempo (lembro-me do aperreio do prefeito Damásio Franca), mantinha-se uma guarda-noturna nas praças, exceto na Praça João Pessoa, vigiada pela guarda dos dois palácios. Nesse mesmo tempo, a praça Pedro Américo não era apenas vigiada, tornara-se a morada dos sem-casas, sem-barracos, a corda das redes trançada no pescoço do pintor maior da Independência. Vem de longe, como se vê, essa insegurança duplamente histórica, isto é, no tempo e na distância sociocultural.
Ao ver o desmonte e achando-me sozinho e tão desamparado quanto as sobras do pedestal e as ruinas dos antigos palacetes, acudiu-me telefonar para Martinho Moreira Franco, que não era prefeito, tampouco secretário ou agente cultural, mas o parceiro seguro, sensível e pronto nesse gênero de cuidados.
- Camilo arrancou-se do pedestal – falei.
Perguntou com quem eu estava, se sozinho. E tão logo soube: “Corra daí, você pode ser assaltado”.
Já falei nisto umas 10 vezes. O recanto escolhido para homenagear o presidente que fez a diferença da cidade de linhas coloniais para a moderna não podia ser mais apropriado e justo. Foi ali onde a aristocracia do açúcar e do algodão, com os ganhos da Primeira Grande Guerra, assentou sua morada mais representativa, mais invejada, todos de mirante para o grande vale que daria mais que “um campo de futebol de arquibancadas feitas pela natureza”, na visão deslumbrada de José Américo.
No tempo em que se erguiam estátuas, algumas até de sobra, a de Camilo coroava o acervo de obras suas, de 1916 a 1920, quando a cidade passou a trocar o casario colonial, quase todo de biqueiras para a rua, pela sucessão de obras e adornos de Trincheiras, Tambiá, Centro e com espaços marcantes como a Praça Venâncio Neiva, o conjunto Pedro Américo/Aristides Lobo, a Escola Normal (hoje Palácio da Justiça), o clássico edifício de A União, demolido por um intelectual no poder em 1973. Foi quando viram casas bonitas como as que ainda restam em Tambiá e nas ruínas de Trincheiras.
A homenagem do busto somente veio ocorrer na gestão do prefeito Oswaldo Pessoa, com a presença solidária do governador Oswaldo Trigueiro, apesar de adversários, 30 anos depois do governo de Camilo.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 02 de junho de 2024.