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Está faltando um novo Celso

publicado: 09/09/2024 14h43, última modificação: 09/09/2024 14h43

por Gonzaga Rodrigues*

Custa compreender como pessoas cultas e de sensibilidade para as vicissitudes da condição humana se agastem com programas sociais adotados num país com dívida cinco vezes centenária a um povo que nasceu igual e foi encontrado plantando e colhendo com deveres e dádivas pacificamente iguais. País verde com seus arranha-céus cercados de montanhas que servem de painel ostensivo para a mais profunda desigualdade social num mundo ultramoderno. Triste e perigosa miséria, seja às margens do nosso pequeno rio Jaguaribe, em cujo pico se adensam os andares de luxo, ou da belíssima e universal Baía da Guanabara. Lá, aos olhos do mundo; aqui, afrontando o deslumbre do mais novo turismo.

 Tal introito vem por conta de um trabalho elaborado por analistas insuspeitos do nosso Tribunal de Contas, com base em dados de 2020–22 e 2023 que, por mais que o objetivo seja o de apontar o desempenho da gestão pública ou identificar lacunas, nos deixa inconformados, para não dizer vencidos, em nosso ativo de esperanças. Por mais longo tempo que se elejam prioridades e se assista e acompanhe a sucessão de planos e programas de desenvolvimento econômico e social, mais se mantém a distância entre o que alcançamos e o que almejávamos.

Está faltando um Celso Furtado que alie a nossa vocação agrícola ao empreendimento capitalista   --   Gonzaga Rodrigues

Alcançamos muito, sem dúvida. Hoje um flanelinha encaixado na exclusão ou no milhão que vive dos programas sociais (a Paraíba é o terceiro lugar no país na proporção de domicílios recebendo Bolsa Família ou Auxílio Brasil), para esse imenso contingente sobra em seu favor o aumento extraordinário da produção de itens de baixo custo, como o ovo, o fubá, o macarrão, o leite, o pão, nisso fazendo a diferença do Nordeste antes da Sudene. Alie-se a essa conquista do nosso decantado desenvolvimento, a ampla e eficaz abrangência do SUS associada ao desempenho do Estado, como deu prova o combate à epidemia de Covid: morremos menos que os demais irmãos regionais. Mas, ao lado desse desempenho creditado ao esforço solidário das gestões do Estado e dos municípios, vamos amargar a persistência de dados como este: segundo o IBGE, “a Paraíba registrou um índice GINI de 0.558, acima da média nacional (0.518) e do Nordeste (0.517). O índice GINI, se é que alguém não sabe, mede a concentração de renda e a desigualdade econômica, sendo que valores mais próximos de zero indicam a maior igualdade”.

Isso nos leva a lembrar a efervescência das lideranças e, sobretudo, da juventude em formação no Nordeste dos anos 1960 engajadas na ideia de um visionário de Pombal, mais que racionalista, como ele próprio se definia, de reduzir os índices de desigualdade entre as regiões Nordeste e Centro-Sul do país. Além da pobreza histórica revivida a cada leitura do grande livro de José Américo, “A Paraíba e seus problemas”, a situação se agravara com a grande seca de 1958. É quando Celso Furtado larga a sede europeia dos altos e novos estudos que enfeixavam as teorias do desenvolvimento econômico e vem testá-las, com uma legião de técnicos, numa das regiões mais desiguais do mundo.

Um dado surgido minutos antes de iniciar o texto: quatro dobradiças para o balcão da cozinha custaram-me, há uma hora, R$ 14; antes de chegar em casa, me vendem, na parada do sinal, cinco cajus por R$ 12. O caju daqui, a dobradiça de São Paulo.

 Está faltando um Celso Furtado que alie a nossa vocação agrícola ao empreendimento capitalista e faça voltar ao campo não mais o escravo do eito e da palha da cana, mas o milhão de cidadãos que hoje enfeiam social e politicamente as ribanceiras marginais de uma das cidades mais cordiais do nosso país.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 08 de setembro de 2024.