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Jackson e meu tormento

publicado: 27/03/2023 00h00, última modificação: 27/03/2023 10h21

por Gonzaga Rodrigues*

Em 1968, a lista castrense de punidos da UFPB deu-me a conhecer de nome o jovem professor José Jackson Carneiro de Carvalho, da Faculdade de Filosofia e Letras. Quatro anos antes, o capitão com quem a ditadura substituiu o civilista Mário Moacyr Porto já havia me penalizado atando-me a um clipe e devolvendo-me ao quadro de redatores do Estado.  

         Foi nessas circunstâncias que retive o nome de Jackson, julgando-me no foco da mesma visão e engajamento político ou ideológico.

Quem é ele? – indaguei a José Ferreira Ramos, também professor e ex-seminarista, meu compadre e meu crítico mais à vontade. Este era lacerdista de camisa verde, tomista, humilhando-me a cada página que lia direto do latim da grande Suma Teológica. Coube a esse meu irmão-afim, voltairiano de humor, definir-me para toda a vida: “Dos que conheço, você é o único que consegue escrever sem saber ler”.

        E tantas décadas depois, tocado há pouco pela morte de Jackson de Carvalho e revendo seu exaustivo esforço de inteligência e análise da obra de Albert Camus, no intuito de atingir o leitor volátil de hoje, como volto a reenquadrar-me naquela sentença bem humorada de um dos meus mais diletos críticos! 

         Foi um tormento que não passou de todo. Saí da leitura como quem sai de um pesadelo. Levantei da cama, numa madrugada fria do sanatório, inteiramente alheio ao ressono e à intermitência da tosse de meus setenta companheiros de enfermaria, quando fechei a leitura da tradução de “O Estrangeiro”, de Camus, que Pedro Santos me levara na visita do domingo.

Há males que vêm por bem: não fosse esse longo estágio hospitalar e nunca a dispersão da vida livre me deixaria ler os volumosos Tolstói, Thomas Mann, mesmo Os Sertões, de Euclides, que, na Casa do Estudante, eu deixara pela metade. Mas desses livros imensos filtrei, para toda a vida,  alguma experiência de humanidade. E do livro que eu acabara de fechar, de leitura irresistível, tudo me pareceu confuso e mais ainda quando fui ver em que me ajudaria a crítica. Lera um Camus completamente diferente do que lera Sartre, que vira o que eu não conseguia ver. Que leitor sou eu, meu Deus? “Melhor voltar conformado ao primeiro romance estrangeiro que me caiu nas mãos: “Emigrados de luxo”, uma aventura barata de Maurice Dekobra. Já bem maduro, volto a enfrentar o desafio de Camus motivado por uma passagem de Murilo Mendes: “Conheci-o de perto: usava o cilício da lucidez, as alpercatas da crítica. Do rigor ético. De exigência estética”.

E a densa nuvem de sombras a me perturbar. O que esse Camus pretende dizer?!” E fui à professora Ângela, indicada para essas horas: “Na tua lucidez, o que condenou sem remissão o Meursault do Estrangeiro? A fria indiferença ante a mãe morta, no velório, ou o assassinato do árabe?” / - Por que me pergunta? / - Porque Sartre explica o que não consigo perceber.”

 - Gonzaga, os filósofos têm sua maneira própria de pensar. Fique com a sua, a de leitor”.- conformou-me a amiga. E apaziguei minhas limitações.

O que não aconteceu com José Jackson Carneiro de Carvalho, que, vendo a angústia do apedeuta, dedicou três anos de sua aposentadoria, de sua merecida disponibilidade para pegar na mão de leitores menos iluminados. Entre os feitos e ascensões do magistério e do homem público, ficará o legado do escritor para cada geração que, daqui a cem anos, o encontre na estante, ainda que, com o tempo, se ache na prateleira de baixo e cheio de poeira. Foi assim que encontrei o livrinho de Lima Barreto quando Francisco de Assis Barbosa ainda não o havia ressuscitado.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 26 de março de 2023.