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Lá se foi Manuel

publicado: 12/06/2023 11h53, última modificação: 12/06/2023 11h53

por Gonzaga Rodrigues*

A noiva foi comigo, pegados na mão, deixar qualquer coisa que a mãe encomendara logo que a filha saísse do trabalho. De mãos coladas, mãos quentes, contornando barracas, pilhas de frutas, sacos de legumes, rodas e imprensados de ferreiros até alcançarmos o ponto de venda de D. Nenen, no Mercado Central do tempo que era de todas as classes. Tempo em que o balaieiro de pescoço enterrado na feira da madame era o display de evidência mais ostensiva da distinção burguesa de classe.

A alguma distância de nós, lá de sua barraca bem sortida e crescida, seu Manuel, o dono, não tirava os olhos e a boa atenção do que se passava ali perto, naquele momento fagueiro de vida da vizinha.

"Lá de sua barraca bem sortida e crescida, seu Manuel, o dono,  não tirava os olhos e a boa atenção do que se passava ali perto" 
Gonzaga Rodrigues

Não era psicólogo, talvez nem lesse direito; falava pouco, talvez só dos negócios, mas não se isolava apenas entre as quatro paredes do seu comércio ou das 50 de lavoura ou de criação de alguma terra no interior. Tanto que, à medida que foi crescendo, passando de barraca à mercearia, de mercearia a mercado, de mercado a super, conseguia crescer juntamente com os irmãos. Cada qual saiu com o seu mercado ou supermercado.

Desde o olhar, que nos pôs naquela manhã de feira de 1959, que não me dissocio desse vizinho atencioso de minha futura sogra e do enlace que aos seus olhos se prenunciava.

Revejo-o com os irmãos mais moços no primeiro mercado aos fundos do antigo mercado público da Torre. Biu, Marcos, um outro mais novo e, com eles, funda unidos o seu primeiro supermercado fora do mercado púbico antigo. Cresce, os irmãos foram ganhando autonomia, e termina Manuel, com gestores mais modernos e de planos mais ambiciosos, ele se ocultando por trás do La Torre, marca que é hoje um dos portais de abastecimento doméstico mais demandados não só pelo bairro como pelo grande centro e seus arredores.

“Tudo bom, Manuel?” – passei mais de cinquenta anos dando-lhe esse bom dia, sem acrescentar muito e sem deixar de pesar uma só dessas palavras. Que em nenhuma circunstância foram apenas vocábulos. Um “tudo bom” de resina e lacre feitos de momentos e vicissitudes mais meus do que dele. Houve ocasião em que, para comprar, tive de chamá-lo a um canto antes de entrar na recolha.

Desde alguns anos já não geria, mas não se ausentava, fosse ajudando os caixas na embalagem ou, mais recentemente, sentado à passagem continua e ruidosa de uma clientela que ele nunca sonhou.

Nesse fim de semana, ante a cadeira vazia, não me deram notícia dele. Mas como foi importante para o seu bairro, sem o saber.

 As gameleiras têm sido assim. Morrem sem o saber. A do Roger, a de Tambaú, a de Areia.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 11 de junho de 2023.