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Lembranças de um tradutor de telegrama

publicado: 26/08/2024 11h27, última modificação: 26/08/2024 11h27

por Gonzaga Rodrigues*

A carteira do trabalho é de março de 1954, quando o ministro Goulart propõe ao governo 100% de aumento ao salário mínimo. Eu traduzia telegrama no jornal O Norte e ganhava o mínimo, sem carteira, como revisor. Ganhava pouco, bem aquém do necessário, mas com leitura e intuição suficientes para invejar o texto enxuto, sem excrecência nem conectivos importados via radiotelegrafia. Em entrevista para as “Memórias” de A União, Rubens Nóbrega, 22 anos depois de mim, também festeja a mesma experiência. Ler copiando nos atém muito mais ao significado ou valor de cada palavra ou construção, parecendo impregnar-se mais seguramente em nossa experiência cognitiva. Para o antigo tradutor, quando o lead chegou às nossas redações, já nos encontrou meio desasnados pelas agências internacionais de notícia, que falseavam no conteúdo, mas nos iniciava na concisão e na forma.

Nesse conflito, avalie-se o que tive de aturar, no esquerdismo da idade e da minha condição, ter de traduzir literal e fielmente o noticiário da agência dos Associados no ano em que Getúlio é levado ao suicídio! Getúlio que a marchinha de João de Barro e Zé Maria de Abreu nos levava a chamar e cantar Gegê (“Ai, Gegê! Que saudades que nós temos de você”). Foram dois anos de mortificação de um ideário nascente a se confrontar com o radicalismo furioso das principais figuras do noticiário, encabeçadas por Lacerda, Bilac Pinto, Afonso Arinos e o próprio Chateaubriand, que tanto se servira das atenções de Getúlio. Isso exatamente no ano em que passo para dentro as “Memórias do Cárcere” e o relato de ninguém menos que o próprio Graciliano em sua viagem de inspeção ideológica à então URSS. O velho Graça se impressionara com a antiga menina de descendência czarista, princesa do antigo regime, de braços dados com colegas enfermeiras e assistentes sociais numa colônia de férias para operários.

Vargas era um predestinado. Candidato em 1950, ele sabia, convicto, do que o esperava   --   Gonzaga Rodrigues

É o 24 de agosto que o sábado de ontem me lembra, 70 anos da madrugada em que tentei descrever em Café Alvear, vivendo ao pé do rádio, minuto a minuto, os acontecimentos que terminaram no suicídio do presidente. A última página já fechada, ninguém mais no jornal a não ser o impressor, e vem a chamada brusca rompendo o programa de clássicos leves da Mairink Veiga para a movimentação inusitada no Palácio do Catete. (...) Encarregado do noticiário nacional, eu vinha acompanhando vivamente a corrente dos fatos e das falas que saíram compondo, desde a morte do repórter Nestor Moreira ao atentado a Carlos Lacerda, o cenário turbulento que a Tribuna da Imprensa e o coro dos demais jornais passaram a chamar de “mar de lama”.

Vargas era um predestinado. Candidato em 1950, ele sabia, convicto, o que o esperava: “Tenho plena certeza de que serei eleito, mas sei também que, pela segunda vez, não chegarei ao fim do meu governo” — previu como candidato  em entrevista à Folha da Noite de S. Paulo: “Até onde resistirei? Se não me matarem, até que ponto meus nervos poderão aguentar? Não poderei tolerar humilhações... O Brasil ainda não conseguiu sua independência econômica e, neste sentido, farei tudo para consegui-lo. Serei combatido sem tréguas. Eles, os grupos internacionais, não me atacarão de frente, usarão outra tática mais eficaz. Subvencionarão os brasileiros inescrupulosos...”.

E o mais, todos sabem. Uns por ouvir dizer, outros pelo registro histórico, grande parte esquecida do visto por Darcy Ribeiro como o “supremo ato político da história brasileira”.

“Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 25 de agosto de 2024.