Atraído por aforismo de Gide, saído da sombra para o Memorial que é página deste jornal, já me achava fechando a escrita à luz do do poente, quando vem o pior: a tevê anuncia a morte de Dalton Trevisan. Ele de sua Curitiba, província literária isolada até então dos cânones, tornada epicentro do mais novo modo de contar. O conto clássico já havia encurtado fora das nossas matrizes, aqui e ali com Tchecov, Katherine Mansfield, William Saroyan, para falar do que sei. Mas não havia chegado ao conto-síntese, “beirando o patético e o grotesco, a face oculta de um ser humano que sempre procura mostrar o que na realidade não é”, como flagra Afrânio Coutinho.
Trevisan partiu na frente com repercussão em todos os arraiais da short history. Do conto sem obrigação de começo, meio e fim.
Era o forte de todas as praças literárias do nosso país, com a presença, uma em cima da outra -- Gonzaga Rodrigues
Na Divisão de Documentação e Cultura do Ministério da Educação, autônoma nas mãos do paraibano José Semeão Leal, o gênero havia conquistado o seu lugar teórico num manual dos Cadernos de Cultura (“Variações sobre o conto”, de Herman Lima, teórico e contista premiado em versão nova do gênero com o livro “Tigipió”, já nos chamando para o conto do instante como o que foi traduzido por “Felicidade”, de K. Mansfield).
Era o forte de todas as praças literárias do nosso país, com a presença, uma em cima da outra, de antologias e mais antologias sem distinção de estilos. Era a onda igualmente favorável ao surgimento dos nossos melhores tradutores, ganhando um dinheirinho extra com os antológicos da nossa perene colonização.
Mas o que vinha com Trevisan, isolado lá no Paraná, juntava-se ao que saía do Recife, com Osman Lins, o curitibano mais ousado, num coloquial trabalhado numa nova gama literária com personagens ora patéticos, às vezes grotescos, o autor se confundindo com eles, ricos de interesse humano.
Como contista, não mais que contista, ele atiçou vocações em todas as Curitibas do país. Sua prosa, marcada pela síntese, de incisivas pinceladas, com seus Jós, seus Lázaros e até Jesus, parecido com o que entrou na casa de Nathanael Alves, aqui em Tambauzinho, tomou seu pileque e seguiu em frente em situação de rua, nada sacrílega.
Mas o grande personagem, como vê Afrânio Coutinho, é a sua Curitiba, onde se fechou a vida inteira como indiferente a entrevistas, a prêmios, a uma das repercussões literárias mais ricas do Brasil. Rica de êxito e de influência.
Não esqueço do que aconteceu conosco, aspirantes ansiosos e tenazes a ingressar no gênero, ao ser lançado um concurso nacional, “Conte uma história sobre sua cidade”, bancado pelo Jornal do Brasil de fins da década de 1950. Sai premiado um motorista de praça, o gaúcho William Carlos Muller, leitor de Trevisan, enquanto esperava passageiro, e autor premiado enquanto aguardavam o resultado Adalberto Barreto, Robério Toscano, Maria José Limeira e o perdedor que dá este depoimento.
Escrevendo desde 1945, já escritor com 20 anos, publicando grande parte em formato de cordel, e a partir de “Novelas nada exemplares” a maioria em livros, chegaram a dezenas os seus títulos, o último registrado em resenha de 1983, “Meu querido assassino”. Os seis meses que faltavam para viver 100 anos seus deuses lhe deram de presente. Sem sair da tenda de trabalho ou sem perder a companhia dos seus fantasmas, viveu a repercussão mundial de sua obra.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 15 de dezembro de 2024.