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Nossa dívida com Porto Alegre

publicado: 08/04/2024 13h00, última modificação: 08/04/2024 13h00

por Gonzaga Rodrigues*

Nesta idade de releituras, trago às mãos uma obra de Balzac e vem-me à lembrança o esforço da antiga editora Globo, de Porto Alegre, para editar a versão brasileira da “Comédia Humana”.

O que era feito de forma esparsa, numa vaga de tempo dos Machados de Assis ou de outros escritores famosos, foi realizado de forma sistemática e empresarial
- Gonzaga Rodrigues

A importância dessa editora na admissão do leitor brasileiro no ciclo restrito dos clássicos da Literatura universal ainda está por ser avaliada. Tire-se pelo caso de Balzac, que antes nos chegava através de traduções de uma ou duas obras, Eugênia Grandet à frente, mais da iniciativa portuguesa, sem o arrojo do empreendimento capitaneado por Maurício Rosemblatt e assumido empresarialmente por Henrique Bertaso.
Partindo de uma lista de clássicos universais, a editora organizou o que veio se chamar depois de escola de tradutores, entre os quais se destacavam Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Herbert Caro, Cassemiro Fernandes, a quem se deve a leitura brasileira de toda a Comédia Humana, de todo o Proust, de todos os títulos erigidos pelo tempo em obras-primas da literatura de tradição ocidental.

O que era feito de forma esparsa, numa vaga de tempo dos Machados de Assis ou de outros escritores famosos, foi realizado de forma sistemática e empresarial. E por especialistas, quer dizer, por gente que não apenas sabia a língua a traduzir, mas que tinha a intimidade possível com o texto literário.
Balzac não foi entregue a um tradutor qualquer. Foi entregue a Paulo Rónai, húngaro refugiado no Brasil, iniciado em nossa língua antes de adotar a nossa pátria, e que teve aqui as amizades de Aurélio Buarque, Drummond, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, apoio dos mais decisivos para que aceitasse a grande incumbência da Globo. Foram dez anos de trabalho, de l945 a l955, a partir de quando, bimestralmente, recebia-se, aqui, volume por volume, toda a Comédia Humana.

Na cabeça do meu grupo, liderado por Geraldo Sobral de Lima, passava-se uma revolução. Os dois meses de espera do volume seguinte eram o tempo de leitura do livro em nossas mãos. Tempo de febre. E não recebíamos o romance isolado, como coisa caída do céu. A cada obra antecipava-se uma introdução ao tempo e às circunstâncias do escritor e da sua criação. Um monumento que o Brasil de minha geração ficou devendo aos Bertaso, ao Rio Grande, e que o preço de balcão de cada volume nunca chegará a ser pago.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 07 de abril de 2024.