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O Chaleira que não entrou na História

publicado: 03/04/2023 00h00, última modificação: 04/04/2023 11h42

por Gonzaga Rodrigues*

Na semana passada, um desses cachorros que conduzem seus donos pelas praças e calçadas, parando a cada poste e sendo atendidos em todas as suas necessidades, por pouco não me pegou na batata da perna.

         Não sei se é meu sangue ou meu suor, mas nunca nos demos bem. Tarde da noite, quando tinha de arrastar a pé pela Almirante Barroso até alcançar a Torre, onde morava, ia pelo meio da rua temendo a bocanhada dos pastores alemães que guardavam os ricaços daquele tempo. No Censo de 1950 sofri com os “os amigos do homem” na zona rural. No seu ciclo evolutivo urbanizaram-se e se dividiram em classe: há os que no passeio fazem cocô na mão da madama, que já dispõe de papel de pet para isso, e há o vira-lata largado como os sapiens na classe dos coletores e caçadores primitivos. Escreveram que o cachorro foi o primeiro animal a ser domesticado pelo homem. De modo que é inútil estranhar essa sua ascensão aos cuidados burgueses, superior, a certas sensibilidades, ao amparo à criança pobre.

Aqui onde moro, num edifício classe média ao lado da Epitácio, ouvem-se mais cachorros do que gente. É por eles, às dezenas, que sou saudado todas as manhãs e acordado muitas vezes antes da hora.

Aqui onde moro, num edifício classe média ao lado da Epitácio, ouvem-se mais cachorros do que gente
Gonzaga Rodrigues

No tempo do coronel Coutinho, há mais de um século, o cachorro já dava sinais dessa evolução. Vejamos com as suas próprias palavras, tiradas do livro “Reminiscências”:        

“Foi no ano de l906, no tempo do Presidente Walfredo Leal...  Apareceu na cidade um belo tipo canino, grande, vermelho, o lombo tirando a preto.Dizia-se que viera do engenho ‘Vigário’, do coronel João Raposo, incorporado à caravana do Presidente do Estado, que ali fora para um batizado.

Aqui chegando, tomou hospedagem em Palácio, com o consentimento do Monsenhor, sem dúvida, passando a conviver com o poder em pé de igualdade com os áulicos, que eram chamados de ‘chaleiras’. Chaleira ficou sendo, também, o nome do novo servidor pelo fato de acompanhar o Presidente em todos os passos.

Os modos do Chaleira o distinguiam dos da sua raça, que ele olhava e rosnava com desdém.  Notou o coronel que ele não era hostil apenas com os de sua laia; era também com os humildes, os pés descalços, pois enquanto balançava a cauda e festejava os mais próximos do Presidente, rosnava com desprezo para “aqueles do povo que o chamassem de Chaleira”.

Tinha forte atração pela música e não havia festa religiosa ou profana a que ele não ficasse atento. Tomava o trem e viajava para Cabedelo ou para o interior, retornando sempre. Ensinaram-lhe a tomar e saltar do bonde de burro, proeza com que a cidade se acostumara.

Um dia, aborrecido do palácio, mudou-se para o Hotel Central, onde foi bem recebido. Ali permaneceu muitos anos até que, tendo avançado num cão de estimação do dono da casa, levou fortes correadas, debandando. Mudou-se, então, para a Escola de Aprendizes Marinheiros, onde fez camaradagem com o carneiro da Banda, formando com ele nas paradas, quando exibia um peitoral de seda com as cores nacionais.

Muitas foram as tentativas do dono do hotel para tê-lo de volta. Mas, uma vez solto, voltava à Escola, onde morreu de velho com direito a necrológio nas páginas de A União, redigido pelo dr. Alcebíades Silva, da primeira linha do austero jornal.”

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 02 de abril de 2023.