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O contrassenso pasmoso

publicado: 21/08/2023 10h42, última modificação: 21/08/2023 10h42

por Gonzaga Rodrigues*

Queria poder escrever sobre o Amazonas ou a Amazônia. Quem, no ramo, não curte esse desejo? O rio imenso, primeiro orgulho interno e fama universal do Brasil, com uma bacia que se estende por 6,7 milhões de quilômetros quadrados, abrangendo sete países, irrigando o maior bioma do mundo, a Amazônia!

Mas bem cedo, menino ainda (e ainda mais por ser menino), o mapa que mandaram o menino pintar de verde-mangueira foi fechando a cor, ficando sempre mais escuro e impenetrável.

Eu não era nascido, Chico Avelino, meu avô, havia se juntado aos judeus errantes do Ceará, atraídos pelo ouro fácil dos seringais, e voltou ao Brejo de mãos vazias, com sequelas de veneno de cobra e, por cima, ainda mais de juízo avariado. Vó pastora, sua mulher, teve de forçar o muque dos onze filhos, independente de idade e gênero, na cavação da roça brejeira da sobrevivência. E o neto desgarrado, adotado fora da tribo, já começara a ver coisas pretas por baixo da beleza colorida dos antigos lápis John Faber.

Eu não era nascido, Chico Avelino, meu avô, havia se juntado aos judeus errantes do Ceará, atraídos pelo ouro fácil dos seringais
Gonzaga Rodrigues

Alguns anos depois, já leitor ambicioso, cai nas mãos do neto uma página de Euclides da Cunha onde se lê que o imenso Amazonas é o menos brasileiro dos rios. Volto a reler: “Devastador da terra e da mata, um estranho adversário, entregue, dia e noite à faina de solapar a sua própria terra. Um demolidor de ilhas, barrancos, montes, do qual as próprias margens fogem dele. Um contrassenso pasmoso na linguagem épica do grande escritor brasileiro, que me mandava de volta às histórias dos que haviam me criado, parentes mais remediados do avô infortunado. 

Depois - bem depois - vem “A Selva” do português Ferreira de Castro. Como Euclides, ele esteve lá, e mais que Euclides, provou do fel. Moço ainda, penetrou na selva, atolou as botas da aventura no seringal para descrever em linguagem de grande romancista a geena em que os brasileiros se esfrangalhavam para mitigar a fome. Trocavam a terra que matava por falta de água pela terra que matava por água de sobra. E fui buscar na moderna literatura portuguesa, não com as mesmas palavras, o jugo infame que levara meu avô a trocar o pirarucu pegado a mão nos alagados do seringal pelos nacos de sal, farinha e cachaça no barracão do atravessador da goma elástica importada pelos precursores do mercado globalizado.

Meu avô nunca recebeu dinheiro, igual aos outros sempre estava devendo. Deixaram-no escapar num barco clandestino até o Pará porque, coitado, já não tinha o juízo.

Muito depois é que vimos descobrir, por ouvir dizer, que a Amazônia valia por sua função no equilíbrio ambiental do planeta. O que estava por baixo, no fundo da selva aquática, disperso em 170 povos indígenas, não mereceu mais que registros e martírios solitários e impotentes como os de Rondon e seus seguidores.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 20 de agosto de 2023.