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O primeiro deslumbre

publicado: 26/02/2024 16h04, última modificação: 26/02/2024 16h04

por Gonzaga Rodrigues*

Antes de fixar morada nesta cidade resguardada de ufanias, retivera-a em dois relances. Primeiroem companhia de meus pais,em 1942, numa promessa que vieram pagar na Penha. Desse primeiro contato, já anoitecendo,resta uma penumbra de copas e de sombras que anulava ainda mais as tochinhasde luz nevoenta sumidas ao longo da praça Pedro Américo. O palacete de janelões imperiais, ao lado, apenas se insinuava, enfumado na noite, só vindo impor-se aos meus olhos de menino gruteiro sob o clarão da manhã seguinte.

 A pensão, descendo para a Estação, era um corredor de quartos num dos quais nos acomodamos. Dormi sem problema. A janta não foi piornem melhor que a do nosso sítio. Pela promessa, cumpria ir ao santuário a pé, mas a erisipela de meu pai terminou botando-nos num carro de aluguel. Vim sonhando com a Capital  esó via mato, capoeira braba até avistar, já em cima, a fímbria de um azul meio esverdeado, as ondas vindo lamber as casinhas de palha ao sopé da barreira. O mar oceano não me causou qualquer emoção. Nada que me pertencesse.

A pensão, descendo para a Estação, era um corredor de quartos num dos quais nos acomodamos

Uns três anos depois vim sozinho, pensando em matricular-me na Escola de Artífices, depois Escola Industrial. Pela primeira vez subi a ladeira central da cidade, me vi de repente num burburinho de feira grande, mas sem mercadoria, além de conversas. Só gente, muita gente em rodas e por calçadas, sob marquises, cafés, pavilhões ou ao sol brabo de verão, tudo isto a me implantar a primeira noção do parlatório que o bonde batizou de Ponto de Cem Réis.

Me informei e tomei o caminho da escola, nesse dia estreando o álbum de minha mancebia com esta nossa cidade. Era, verdadeiramente, a trilha principal, a da rua Direita, isto é, direta, iniciada no adro de São Francisco e saindo em linha de régua, igreja após igreja, palácios, praça principal, Academia de Comércio, Câmara, culminando com o mais belo conjunto de palacetes residenciais fruto da riqueza de elite sustentada pelo boom do algodão e do açúcar.

Finalizava com chave de ouro: o belvedere ou miradouro em larga balaustrada que o presidente Camilo de Holanda, com reprimenda do chefão Epitácio, construíra para sublinhar a beleza de cartão postal com que o vale extenso e fundo que se espraiava até confinar-se com a mata e as águas do rio que margeia os sítios da fundação da cidade. Era a febre urbanista, decretada ainda  pelo “Rio civiliza-se” de Pereira Passos, de onde Camilo procedera

E me esgueirei sem ânimo pelo que a Escola de Artífice daquele tempo oferecia. Ao sair nesse estado de espírito, já pensando em deixar o ginásio de Campina Grande,  novamentedou com as vistas nessa varanda sem fim, com pracinha e busto certamente em homenagem a seu construtor, tudo muito pequeno ainda diante do vale onde preguei meus olhos de adesão a João Pessoa. Nunca uma paisagem de verdade, sem ser de estampa, me abraçava com aquela intensidade.

Vai lá hoje, Luiz! Não faz muito tempo, meu amigo Antônio Figueiredo, que não consta dos registros literários, repintou o cenário original como refúgio das molecagens de sua infância em Jaguaribe. Era lá, Martinho Moreira e Carlos Pereira entre eles,  onde brincavam de “pulha”, brincadeira muito lá deles que dá pretexto a essa sua página lírica com jeito de ficção.

Sumiu o vale, a mata destroçada e mais da metade dela cedendo lugar à favela. O casario da oligarquia homenageada pelo belvedere está de portas batidas, quando ainda restam portas. E numa homenagem às honras prestadas a Camilo, o presidente da modernização, desapareceram com seu busto.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 25 de fevereiro de 2024.