Notícias

Ouvindo de memória

publicado: 11/12/2023 12h12, última modificação: 11/12/2023 12h13

por Gonzaga Rodrigues*

Não aprendi música. Nem realejo toquei, mas como devo a suas aparições nalguns momentos em que de mim próprio senti-me abandonado!

Entrara para um longo internamento no sanatório, justamente quando começava a me firmar, casava, e lá surgem uns arranhões no raio-x forçando-me a deixar mulher e dois filhos à minha espera, confiado na cura, na propalada força da streptomicina e, mais que tudo, no benéfico rigor do tratamento no primitivo Clementino Fraga. Um dos médicos fora antigo colega da Casa do Estudante, leu a radiografia de costas para mim, e falou ao virar-se, com os olhos do coração: “Você não pode ficar em casa com mulher e filhos pequenos. Tem de ser internado. Cuido disso hoje.” E me vendo desabado: “Mas é VT, virgem de tratamento, em três ou quatro meses cai fora”. E me firmei nessa crença convivendo com oitenta vizinhos de enfermaria para os quais a doença, em sua maioria, era uma féria na luta sem trégua pela subsistência.

Como sou dado à amizade, isto me ajudou em consideração e privilégios. Viam chegar-me os jornais (A União e O Norte), apressavam-se em trazê-los da portaria, e dois ou três ficavam ao redor de mim a acerar a leitura.

De risco em risco, identificado o som das letras, da boca deles foram surgindo as palavras
Gonzaga Rodrigues

Havia uma cafua entre aroeiras lá fora e enquanto não chegava a hora do jantar inventei de riscar no chão, para os três ou quatro que me assediavam, a carta do ABC. Peguei-me na fonética de cada letra. Tá vendo isso aqui? Isso é um A. E saímos juntando. O bacilo impedia que fosse diferente. De risco em risco, identificado o som das letras, da boca deles foram surgindo as palavras. Não será sem motivo que a antiga alfabetização rural, quando havia, era cantada: b com a, be-a-bá.

Estava nessa, lendo os livros que nunca findam e que o trabalho e a dispersão ajudavam a fechar, sem esperar jamais que entre os traumas da doença estava o da hemoptise.

E veio. Um primeiro aviso apenas, logo atenuado pela pronta enfermagem e o hemostático. Mas senti a vida esvair inteira primeiro que o sangue. Toda ela, subitamente, em corpo e espírito. As mãos retesadas, o suor de morte, eu todo trêmulo. Vem Terezinha ou Mercês, não lembro agora qual, e me põe na boca um tranquilizante. Engasgo-me com a água temendo o sufoco, a asfixia. E enquanto me sentia entregue, já deitado, o travesseiro alto, ouço ressoar por cima da enfermaria vizinha, separada por meia parede, a valsa da amplificadora de Alagoa Nova, os Contos dos Bosques de Viena. E aquela fraqueza e algidez do meu ser entra a melodiar, sem resistência, no crepúsculo encantado daquela primeira e imorredoura experiência com Strauss.

Oito ou dez anos depois é quenos dão o nome daquela sensação venturosa do menino, quando, deitados no chão da API, eu e Giovani Montenegro - confrade musical ainda hoje com seu lugar aberto - lisos, sem um toco de cigarro, ouvimos a valsa célebre na discoteca organizada por Carlos Romero.  Eu, Romero, a valsa, Strauss, tudo de Alagoa Nova.

Burity queria morrer ouvindo a Missa de Mozart.

Toco no assunto ao tentar ler a “Pegada digital” de José Maria Mendes, eu sem qualquer noção das palavras-chaves de seu comentário endereçado a André Cananéa. Hoje usurpado dos meus antigos suportes musicais e da própria língua em que pude saber um pouco da vida, para agravar, ainda me vem a mouquice.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 10 de dezembro de 2023.