A posse justa, meritória, tal como se inscreve na letra estatutária de uma entidade acadêmica, não só merece como cobra a presença solidária, sobretudo de todo um plenário de confrades a se sentir prestigiado.
Fui conferir e vi ter sido dessa ordem a posse, terça-feira passada, do escritor Gil Messias na nossa APL. Mas chovia lá fora, fazia frio, e mesmo encapotado, com camisa de forro, rendi-me às seqüelas do enfisema, contentando-me em aceirar da janela do carro o imprensado de guarda-chuvas querendo entrar de vez pelas ombreiras coloniais de uma casa comum, há mais de oitenta anos convertida em portal sem ornatos, simples como o calcário do seu interior.
Desde que me convenci, ainda em tempo, de que viria dali a única névoa de sobrevida do meu ser literário, que passei a frequentá-la, uma vez que sob a simpatia sem igual de Oscar de Oliveira Castro, escritor, biógrafo de Arruda Câmara e médico a quem o governo de José Américo confiou a gestão dos seus programas de política social.
Então, pedi ao confrade José Nunes que me assegurasse a leitura dos discursos, já que o rádio e a televisão de hoje e de sempre, aqui e talvez no resto do mundo, fora uma Bruxelas, não vê Ibope no palco das academias e já não digo na ópera, mas mesmo nas sinfônicas. Dos três ou quatro canais de televisão que temos, dois deles passam a tarde inteira com a câmara nas taras, nos ladrões pequenos, nos pequenos bandidos dada a inviabilidade de formar um público para coisas mais edificantes. A Academia, mesmo a Brasileira, só entra em pauta quando o imortal não pode mais dar seu recado ao vivo ou aos vivos.
Tornei-me leitor de Gil Messias quando entrei a me despedir do batente e a me sentir um velho de emoções retardadas. Já encontro não apenas o cronista que “está trocando em miúdos as exigências de sua vocação”— como lamentava Fernando Sabino — mas o ensaísta bem preparado que se vale da crônica para ajudar no entendimento do leitor, situá-lo ou complementá-lo naquilo que o autor bem soube explorar do muito que leu. Leitores enfadados como eu, que julgava conhecer Sobral Pinto até parar na página que Gil lhe dedica. E assim a sucessão de páginas do seu livro mais recente, de texto no papel, que é o que não me foge aos olhos e à paciência. Só me vem um porém: por que o título “O redator de obituários”? Quantos mortos ou insertos no anonimato eu deixei em seu livro? Eu não encontraria jamais, na minha esquina — e não vou ao cinema desde que o Municipal fechou suas portas —, a livraria sonhada por uma viúva entediada, perdida numa cidadezinha inglesa que olha com estranheza o que vem de fora. Isso deu filme e veio cair entre as ocorrências mais requeridas pelo meu gosto particular. É óbito? É não. Mais dois exemplos, a mim que vivi a repercussão das figuras: há gente mais viva na memória política e cívica deste país que Sobral Pinto ou Milton Campos? Quanta coisa a leitura de Gil me acrescentou! Das 400 páginas saí bem melhor do que entrei.
Falei muito de mim, mas até nisso estava previsto à página 158: “Retrato do cronista” E vem de presente uma de Freud: ”Quando Pedro me fala sobre Paulo, sei mais de Pedro que de Paulo”. Então, recordei aqueles que juram contemplar apenas o texto puro de Augusto dos Anjos, sem ouvir a dor do homem que o escreveu. E pensei nos que diminuem Lima Barreto, porque em sua obra pulsa a confissão de sua própria vida. Mas talvez não compreendam que a poesia e a prosa nascem da alma, e toda vez que o autor se entrega a elas, é o humano que floresce, eterno.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 7 de setembro de 2025.