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Seu Zé

publicado: 26/02/2023 00h00, última modificação: 27/02/2023 10h12

por Gonzaga Rodrigues*

Indicam-me a farmácia de manipulação “que fica defronte do jornal O Norte”. Como gostei, como me senti agradado!

Reparei na menina, não a vi com idade para fazer de um jornal fechado há quatorze anos um ponto de referência. Menina, recepcionista, se muito nos seus 20 aninhos.

E lá me vou, a memória se encarregando de povoar as casas hoje fechadas ou transtornadas da velha Pedro II.

Vindo pela Camilo de Holanda, dobro à esquerda para sair na rua do imperador mesmo em frente à casa de D. Ada, uma das minhas madrinhas por afeto, esposa do desembargador João Santa Cruz. Residia antes na 1817, vizinha à antiga A União, e me vendo no papo diário com o marido à passagem pela sua janela, adotou-me em seu café das tardes, quando o jornal ainda não havia me assimilado bem. Isto nos meus 20 anos, deixada a Revisão para entrar principiante da Redação.

O marido de D. Ada Lemos, o advogado João Santa Cruz, reunia, simpaticamente, as honras de sua classe e as de todo o povo, de onde vinha a maioria de sua clientela. Deputado cassado, preso em Buraquinho em 1935, vinte anos depois foi escolhido desembargador na lista enviada pelo TJ ao governo conservador do usineiro Flávio Ribeiro. Sem ter aderido ao conservadorismo, diga-se em tempo.

E enquanto se processa a manipulação do medicamento, saio para aguardar lá fora, recostado à mureta da casa de outro desembargador, Dr. Pedro Damião Peregrino de Albuquerque. Vem fácil e rápido o nome todo por ter sido outro notável da nossa Justiça e dos respeitos gerais da cidade. Baixinho, muito reservado, crescia admiravelmente nos seus atos e despachos, tudo muito discreto, realçando-se por ser justo.

São dádivas da memória.

"E lá me vou, a memória se encarregando de povoar as casas hoje fechadas ou transtornadas da velha Pedro II" 
Rui Leitão

Saindo desse reino eis-me, sem querer, com os olhos no real, no visível, na pequena favela amontoada de hoje sobrepondo-se ao edifício a que assisti construir, um sonho de arquitetura compatível com a euforia modernizante do jornal off set que se reinstalara nos anos 1970.

O jornal que me fizera surpreso e feliz ao entrar nele com suas três linotipos e sua impressora plana, os rolos sugando o papel de manutenção ainda manual como eu vira pela primeira vez no Rebate de Campina. Era um fevereiro de 1951, Zé Américo alçado ao governo e o Gegê da marchinha de João de Barro e Zé Maria de Abreu, no Carnaval do Rio, voltando à presidência depois de despencar como ditador: “Ai, Gegê, que saudade que nós temos de você.”

Um jornal que, realmente, vim ter parte com ele, com a sua história iniciada em 1908, que rendeu orgulho e poder, e que não sei como Marcone Góes conseguiria entrar e sair apertando-se entre os atuais ocupantes do antigo império, sufocado por casebres e barracos debaixo dos quais desapareceu a logomarca que ajudei a criar.

Onde ficaram as nossas noites de O Norte, o trabalho de vistas no futuro através de três gerações, de Orris Soares e Rocha Barreto a Téocrito, Evandro, Agnaldo Almeida, Rubens Nóbrega, Frutuoso, Nara Waluska?

Onde estou eu nesse amontoado?

- Seu Zé! – grita-me a moça. A pomada está pronta.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 26 de fevereiro de 2023.