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Um velho aldeão

publicado: 17/06/2024 08h46, última modificação: 17/06/2024 08h46

por Gonzaga Rodrigues*

Era um sonho anterior à chegada da velhice: morar às vizinhanças da minha aldeia, numa pequena elevação pintada a lápis colorido por todas as vocações infantis despertadas pelo cromo cheio e doce de fruteira e pela história do menino do outro lado da serra que o cientista carregou de Areia para ser o pintor mais famoso do mundo. Do lado de Alagoa Nova, cercada de serras e de profundos desfiladeiros, cedendo em despenhadeiros mais agudos quando sai para Campina.

O cerco de serras parecia proteger-me – falei assim a meu último contemporâneo de rápidas andanças numa das últimas vezes em que saímos juntos, já oitentões, em redor da cidade que desce hoje pelos antigos morros e vales de mandioca e macaxeira.

“Era assim quando aprendemos a ler nesse grupo escolar aí defronte, depois Prefeitura e hoje Câmara Municipal” – interrompeu-me Aluísio Vieira, proprietário rural que a vereança terminou urbanizando, mas sem amansá-lo. Falou que os morros do Sul devolveram os imigrantes com o crack, a maconha e os paus de fogo que não tinham levado na bagagem da ida. 

"Ficávamos esfregando o rosto no rádio da mercearia com as vistas apuradas na trincheira do nosso herói"
- Gonzaga Rodrigues

E atalhou: “É besteira você pensar no sítio de Joca Patrício. A bandidagem entra lá, limpa-lhe as calças e você será feliz se escapar com vida”.

Foi realmente uma das minhas quimeras, principalmente depois que o pagamento do Estado trocou a fila do Espaço Cultural e o atraso costumeiro pelo caixa eletrônico. Em Alagoa Nova, o banco achou de instalar-se na nova modalidade ao lado do sobrado do velho Joca Patrício, antigo dono do sítio que, na minha leseira, ainda se mantém em minha lembrança como cromo.

Ficaria longe de minhas posses, sem dúvida. Mas o grande impedimento veio mesmo de Aluizio, dois ou três anos mais velho e em pleno juízo: “É meia dúzia de soldados para muitos mil malfeitores. Pode ser até menos, mas, como não se sabe quem é, você tem de se prevenir com todo mundo”.

Além do mais, com quem eu voltaria a me acamaradar? Com quem me reencontrar? Fora de Aluizio, restava na mesma conversa o soldado Adelino, em honra de quem, em 1945, entrei no desfile de todas as escolas para recebê-lo de volta da Segunda Guerra. Quando lhe falei da minha ideia e da tranca de Aluizio, nosso herói, naquela linguagem mansa de escondida bravura, não foi menos franco: “Pela natureza, Luiz, sua e da terra, é uma boa vir praqui. A gente dura de enfadar. Mas já não sabemos com quem estamos. Bem diferente do tempo em que conhecíamos todos e todas as casas nos conheciam”.

Tinham razão. A televisão, em repetidas notícias de assaltos às agências seguidas de Lagoa Seca e Alagoa Nova, confirma ao vivo o receio dos meus velhos camaradas. Apenas o grande Adelino conseguiu, há dois ou três anos, ficar longe de qualquer receio, depois de uma vida respeitado como herói do primeiro batalhão embarcado para a Itália. Sua casa creio que ainda reserva sala inteira de troféus e lembranças da guerra. Como esquecer? Ficávamos esfregando o rosto no rádio da mercearia com as vistas apuradas na trincheira do nosso herói. Ele na Itália e a angústia de sua mãe na conversa de todas as nossas mães.   

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 16 de junho de 2024.