O ano de 2024 vê passar o sesquicentenário de uma rebelião camponesa no nordeste brasileiro. Há quem ainda reaja ao termo “camponês/a” e ainda me lembro de minha primeira polêmica política em 1978, no Recife, por ter cobrado esse termo de um historiador. O mestrado em Sociologia Rural, da UFPB (em Campina Grande) me mostrou que eu estava certo. Foi quando produzi meu primeiro artigo sobre o movimento Quebra-Quilos.
Este movimento foi uma reação a uma das políticas do Governo Imperial que, pressionado pela Inglaterra para acabar com o tráfico de trabalhadores africanos, vinha tentando modernizar a economia do Brasil, desde 1850, para se encaixar na divisão internacional do trabalho. Dentro da política do laissez faire, laissez passer (deixar fazer, deixar passar), o Brasil adotou o sistema métrico decimal francês em 1862, apesar de a Inglaterra o rejeitar, por ser “revolucionário”. O Império deu o prazo de uma década para a adaptação da economia. Em 1872, outro decreto mandava entrar em uso o sistema em nível nacional, a partir de 1 de janeiro de 1874.
No agreste paraibano e em algumas áreas de Pernambuco, Alagoas e Rio Grande do Norte, a aplicação do sistema provocou revoltas populares, lideradas por feirantes e camponeses. O sistema métrico abalou a mentalidade principalmente do homem rural, o pequeno produtor e até do comerciante, instigando uma desconfiança, tanto nas medidas e pesos, quanto no valor dos produtos. Para piorar a situação, foi instituído o sistema em meio a aumento de impostos provinciais, o que veio abalar a frágil economia agropecuária. Pode-se dizer que o Quebra-Quilos foi uma reação espontânea a um detalhe da modernização capitalista, que visava à economia de exportação. O problema foi que, ao generalizar sua aplicação, atingiu a lavoura de subsistência, a camponesa, de excedente mercantilizável, cujo mercado eram as feiras livres. A revolta foi levada a efeito por uma população camponesa na faixa do Agreste da Borborema, quase num formato de meia lua, que ia de Quebrangulo, em Alagoas, até o sul do Rio Grande do Norte, tendo seu centro entre Fagundes, Campina Grande e Areia, zona produtora de subsistência e para feiras.
Na Paraíba, a reação se deu no dia 31 de outubro de 1874, na feira da vila de Fagundes, no município de Campina Grande. No sábado seguinte, foi a vez dos camponeses e feirantes da sede, Campina Grande, se rebelarem, porque também se inventou o imposto do chão. A rebelião consistiu em quebrar as peças de madeira e os pesos, jogando-os no Açude Velho, bem como invadir o cartório e a cadeia, queimando documentos criminais e libertando parentes ou amigos presos em ocasião de crimes. O clima político e social gerado pela rebelião dos Quebra-Quilos teve, em Campina Grande, três alas: a dos feirantes revoltados, cujo líder foi o aguadeiro João (Carga d’Água) Vieira; a dos cangaceiros, de Alexandre de Viveiros e Neco Barros; a dos escravos, que se rebelaram contra seus senhores. O advogado paraibano, Irineu Joffily, que havia recentemente abdicado do cargo de juiz municipal de Campina Grande, passou, como advogado, a defender os “matutos”.
Esse fato repercutiu junto às autoridades, a ponto de merecer comentários da delegação inglesa no Brasil. Em 28 de dezembro de 1874, o cônsul inglês em Pernambuco, Richard Corfield, descreveu: “Nos limites das províncias de Paraíba e Rio Grande do Norte e Alagoas, desde novembro, o interior está num estado de anarquia. O clamor da população, chamada de matutos, contra o sistema de pesos e medidas que eles não compreendem. Fala que as Assembleias taxaram com excesso. O movimento não tem liderança nem qualquer reivindicação política de alteração da ordem. Reforços do Rio e Bahia foram enviados ao interior. Os matutos se armam com o que podem encontrar. Começou na Paraíba. O trabalho para o cultivo do algodão e do açúcar não pode ser obtido; plantações e casas estão abandonadas.
O vice-cônsul da Paraíba, Arthur Dallas também relatou, em 26/12/1874: “Estamos num estado miserável aqui e antes do fim do próximo ano haverá uma terrível miséria nesta província” Contava que mais de cinquenta: “matutos” estão para serem vistos em frente a Palácio e sem nenhum julgamento, e as autoridades prevenindo para que ninguém pedisse habeas corpus por eles. O governo se prepara para enviá-los ao Rio, como recrutamento para que não se repita. Velhos foram sequestrados de suas casas e obrigados a desfilar pelas ruas com um colete de couro molhado e costurado atrás e quando seca com o sol é fatal. Na frente dos quartéis, grupos de mulheres procuram seus parentes, sem nenhum acesso permitido pelo governo. Assim, o matuto capturado era levado para o Rio, sem julgamento, sem nenhuma chance de provar sua inocência.
Em 1875, foi nomeado Juiz de Direito de Campina Grande o Dr. Antônio da Trindade Meira Henriques, do partido conservador, para julgar os processos dos revoltosos. O advogado e liberal Irineu Joffily, formado uma década antes, no Recife, havia abdicado do cargo de juiz municipal de Campina Grande, e passou a defender os “matutos” e o Vigário Calixto. Chegou à cidade, uma tropa do exército sob o comando do General Severiano da Fonseca e José Longuinho da Costa Leite, que não encontrando mais vestígios do levante, começou agindo arbitrariamente, prendendo políticos liberais e o vigário Calixto, além de João Vieira. Outros presos foram enviados à capital da Paraíba, para embarcar para a Corte, vestidos num colete de couro cru, amarrado pelas costas, que eram molhados, durante a caminhada, causando grande sofrimento, e morte.