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Setenta anos como eu quero

publicado: 22/04/2016 14h37, última modificação: 22/04/2016 21h22
Publicado em 03.04.2016


Martinho Moreira Franco

Era uma manhã de domingo. Eu não estava me sentido muito bem. Na verdade, estava me sentindo muito mal. Já vomitara umas três vezes, desde a madrugada. E tossia uma tosse seca, impertinente. Não tinha febre, mas o calafrio desafiava o mercúrio no termômetro. Tremia feito vara verde. Em meio ao estremecimento, dúvidas comuns aos estremecidos me assaltavam sob o cobertor. Haveria alguma virose em curso? Que organismo estaria rondando meus pulmões, meus intestinos, meu único rim, o pâncreas, o fígado, sabia-se lá o quê? Ou estaria de volta a multiplicação desordenada de células? Gato escaldado, vocês sabem...

O quadro evoluía de tal forma que não vi alternativa senão ligar para o meu santo protetor terreno. Claro que hesitei em fazer a ligação. Afinal, era domingo, dia de guarda, de descanso, de repouso. Como importunar alguém numa manhã de recesso, de recato, de recolhimento? Mas, santo, quero dizer, amigo é pra essas coisas. E, apesar do remorso, digitei o número do celular que é minha tábua de salvação sempre que o mar anda revolto pro meu lado. Atendeu com a singeleza de sempre: “Diga, Martinho Moreira Franco...”. Respondi no mesmo tom: “Manoel Jaime Xavier Filho, estou precisando, mais uma vez, de você”.

Ele não estava em casa, como imaginei, àquelas 11h dominicais. Estava visitando um paciente no hospital da Unimed. A condição serviu para atenuar meu remorso, posto que já era meio caminho andado para o que mais aspirava no momento. “Daria pro amigo vir agora aqui no prédio?”, perguntei com inflexão de súplica. “Vou sim, daqui a pouco. Do que se trata?”, quis saber. Fiz o possível resumo da ópera e, devo confessar, já comecei e me sentir melhor, só de ouvir a serenidade da voz no outro lado. Não deu meia hora, adentrou o quarto. Maletinha na mão, o sorriso algo maroto de quem suspeitava do que poderia ter ocorrido na noite anterior, um sábado. Tenho certeza de que “ressaca” passou naquele instante pela sua cabeça. Mas não passou recibo.

É de Gonzaga Rodrigues a mais completa tradução da presença do doutor Manoel Jaime junto ao leito do enfermo: “É uma presença sedativa”. Não haverá melhor definição para assinalar o dom que o nosso amigo comum possui de acalmar o doente no leito. E logo, logo, ao preciso toque abdominal, ao leve toque do estetoscópio no peito e nas costas, senti-me absolutamente sedado. Vale dizer, curado. Após o exame, sabem o que me disse? “Martinho, isso é um quadro de virose. Agora, deixando o seu histórico hospitalar de lado, vamos admitir o seguinte: são coisas da idade, companheiro!”

Movido pela lembrança dos anos em que estudamos juntos no velho Liceu Paraibano, indaguei: “Vem cá, Jaime, estás orçado em quanto?” E ele: “Setenta anos”. Devolvi: “Eu completo para o ano”. Curioso, fui adiante: “E o amigo completa quando?” Sabem o que respondeu? “Hoje.” Isto mesmo: o domingo, 17 de julho de 2015, era dia do aniversário de 70 anos do doutor Manoel Jaime Xavier Filho – e ele estava ali, sereno, tranquilo, sedativo, depois de serenar, tranquilizar e sedar o paciente do hospital da Unimed e atender ao chamado deste velho companheiro cujo histórico médico-hospitalar conhece como a palma da sua mão. Pois bem. É assim que espero e desejo recepcionar a chegada dos meus 70 anos na próxima quarta-feira, 6 de abril: eu e minha circunstância. Quem for meu amigo, peço que respeite essa expectativa e esse desejo. Na data e depois dela. Festa, mesmo, só no meu interior. E, desde já, gratíssimo a todos pela lembrança.