Eu sei, eu sei. Já tem até uma nova novela das 9 no ar, e eu aqui escrevendo sobre o final de Vale Tudo. Mas não é brincadeira o que a autora Manuela Dias e o diretor Paulo Silvestrini fizeram com o material original que tinham em mãos. É coisa para ser estudado em universidades: como arruinar uma obra-prima.
Como já escrevi aqui antes, pela primeira vez as redes sociais fizeram o público acompanhar paralelamente o remake e a versão original da mesma novela. A cada cena da Vale Tudo 2025, vinham as postagens com o recorte do momento correspondente da Vale Tudo 1988. Isso não aconteceu com Pantanal ou com Renascer, outras versões recentes de clássicos das novelas.
Mas, nesse aspecto, a nova Vale Tudo tem dois momentos distintos. No começo, Manuela Dias surpreendeu, tendo em vista a desastrosa entrevista à Folha de S. Paulo, que a autora deu antes da estreia, em que parecia simplesmente não compreender a novela que estava adaptando. Contra todas as expectativas que as palavras da autora despertaram, o começo de Vale Tudo seguia de perto a versão de 1988.
Mas aí a autora começou a fazer a sua novela. A partir do momento em que ela decidiu mudar a história do mistério da família Roitman (Heleninha não estava ao volante no acidente que matou o irmão, mas, sim, a mamãe Odete). A ideia do irmão não ter morrido se revelou uma porta aberta para o insustentável.
Mas foi só a primeira dessas portas porque, a partir daí, a Vale Tudo 2015 começou a se afastar cada vez mais da Vale Tudo 1988. Virou uma novela quase totalmente diferente, e cada vez mais estapafúrdia.
Existe um monte de exemplos na trama, mas é preciso refletir especialmente sobre como uma autora decide macular a obra que está escrevendo ao escantear deliberadamente sua protagonista. Tudo indica que falou mais alto a vingança contra Taís Araújo, por ela ter se atrevido a confessar publicamente (do ponto de vista de uma atriz negra) os rumos que sua personagem estava tomando.
A novela passou a se concentrar no aguardado mistério do assassinato de Odete Roitman, grande acontecimento da versão 1988, e na enxurrada de product placement tão mal acomodados dentro da trama que só faltava Solange dizer a Afonso, no quarto do hospital, que comprou seu vestido na Só Lindezas, jogar a etiqueta no chão e a câmera focar no logo da loja (quem viu Saneamento Básico, o Filme sabe). A Globo fez dinheiro e a qualidade da novela pouco importava.
Quanto ao assassinato, foi uma pataquada só. De ricaços dando depoimento sem advogado à “desmorte” de Odete na última cena, contada da maneira mais rasteira e sem qualquer lógica, a versão 2025 colocou uma pá de cal em si mesma. A personagem de Débora Bloch, que levou um tiro que atravessou seu corpo e ficou inerte sabe-se lá quanto tempo durante a investigação na cena do crime, acorda de supetão na ambulância e, um absurdo após o outro, termina viva e faceira.
Até em O Mágico de Oz tem um legista para atestar a morte da Bruxa Má do Leste. Mas não tem um na polícia de Vale Tudo 2025. E no mesmo capítulo Manuela Dias quis fazer uma reflexão sobre o Brasil numa conversa entre Bartolomeu e Ivan, uma postura que deixou de lado a novela inteira e que era a razão de ser da Vale Tudo original.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 22 de Outubro de 2025.