Acordei dia desses, fui organizar as coisas para começar o dia. E procurei um site de notícias da cidade que nasci. Bem, antes da chegada da televisão, quase toda informação que vinha inicialmente era pela boca das pessoas da casa, da vizinhança, da escola e igreja. E pelas ondas sonoras do rádio.
Muitos anos depois, a televisão nos trouxe cenas engraçadas e muitos modismos. Lembro em particular de um episódio de minha avó, que assistia com regularidade ao noticiário da noite. Durante nossas visitas em sua casa, esse momento era bem solene. Agora, o tempo de exposição à tela quem determinava era ela.
E, por vezes, desligava a TV em nossa cara, cortando a programação, mesmo sob nossos apelos insistentes para continuar ali assistindo. Eu e meus primos ficávamos como cachorros perdidos da mudança. Sem saber o que fazer depois, nem para onde ir.
Mantendo o hábito de procurar informação acessei um site de “notícias”. O destaque era a afirmação do título que dizia que a cidade iria convulsionar, com a distribuição gratuita de mil vibradores por um sex shop da cidade.
Inicialmente a gente acha até engraçado o jogo de linguagem. E imagina o burburinho causado na cidade. Só que me peguei pensando muito em como essa nova forma de encontrar informação tem alterado o sentido de percepção da realidade e, por consequência, da esfera pública, da política.
E de como o marketing digital tem corroído fortemente os processos de noticiabilidade, tornando quase tudo centrado em estratégia de venda com grande sofisticação de dados.
O que mais me chamou a atenção foi constatar ainda todo um processo de transformação cultural relacionado à visibilidade da intimidade e mercantilização do desejo – que não é algo novo. Mas o card que divulgava a informação enfatizava a “abordagem moderna e descomplicada sobre a sexualidade”.
Retrocedi aos anos 1970, recordando que minha geração não teve nenhuma abordagem nem antiga nem moderna sobre o corpo. Era o período da Ditadura Militar no país em que a gente não ousava perguntar absolutamente quase nada. Por medo inclusive de levar a maior surra.
Sim, e como numa das cenas do filme Ainda Estou Aqui, a gente, pré-adolescente, inocente da vida de gente grande, dançava “Je t’aime – moi non plus”, que ressoava numa vitrola assentado num móvel de madeira.
Nem tudo era engraçado numa sociedade marcada pelo autoritarismo que se travestia de conservadorismo para mascarar sua perversidade. Em que a onda falso moralista tentava ocultar de nossas vistas às violências praticadas, quer fossem do Estado, ou àquela que marcaria a vida das mulheres, seus corpos e suas perspectivas de vida.
Assim, sem que houvesse um discurso público, os prostíbulos estavam lotados de meninas, vítimas de violência sexual. Violadas por pai, tio, irmão, vizinho, patrão...
Mesmo sendo educadas para não enxergar o próprio corpo e o direito sobre ele mesmo, o corpo feminino era o lugar de onipresença naquela sociedade também formada culturalmente nas muitas ausências masculinas.
Era ao mesmo tempo o corpo da reprodução quase sem limites, porque mulheres pariam exaustivamente. Filhos e filhas escorriam muitas vezes de suas pernas direito para os céus.
A gente não conseguia enxergar o lugar do desejo, da libido, mas estava no corpo inteiro, e explodia em nós, nas nossas mães e avós, na força do viver.
No silêncio, apenas observando umas às outras, e com o olhar atento, fomos testemunhando um corpo subversivo florescer.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 14 de fevereiro de 2025.