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“Sagrada”, para quem?

publicado: 19/12/2025 09h01, última modificação: 19/12/2025 09h01

por Sandra Raquew Azevêdo*

Fuja da sagrada família. É um tipo ideal potente, convincente, e de grande apelo emocional. Há séculos reforçada no imaginário humano. Nos últimos vintes anos tenho testemunhado horrores que acontecem no ambiente discreto da sagrada família.

Desconfie da dependência emocional, ela quase sempre vem equacionada com algum tipo de exploração. Especialmente patrimonial. Se você é mulher, redobre os cuidados. Se você é LGBTQIAPN+ “é preciso estar atento e forte”.

O abandono tem rondado a vida das pessoas 60+. Ainda mais concreto na idade maior. O Brasil hoje aprovou uma Política Nacional de Cuidados, é um passo, de um longo caminho. O que temos hoje, infelizmente, é que a relação intergeracional não vai lá muito bem.

O perigo, há muito tempo, é o lado de dentro. Onde se recebe insulto, desprezo, onde sistematicamente alguém da “sagrada família”, com certa regularidade, se apropria da força vital de alguém: seja mãe, pai, avó, avô, criança.

Eu cresci ouvindo que da traição nem Jesus escapou. Talvez por causa disto nunca me surpreendeu quando me deparei com os horrores das relações abusivas no interior da “sagrada família”. E fora dela, quando se projeta neste tipo ideal um lugar para se existir.

Certa vez eu tive que implorar para uma mãe dar colo para um filho que, fragilizado, havia desistido de viver. Eu nunca tinha implorado tanto para alguém. Mesmo tendo muita vontade de esculhambar aquela pessoa pela relação abusiva com o filho, já adulto, eu liguei para implorar. Nunca me arrependi de ter me humilhado tanto, interpelado, passado por cima da minha raiva, e ter buscado socorro. Ali era caso de vida e morte.

Na minha visão limitada, eu achava que o colo de mãe, perdido ao longo da vida, poderia quem sabe ajudar meu amigo a amenizar o sofrimento do abandono e exploração sofridos ao longo de sua própria jornada.

Depois da morte dele eu nunca quis na vida encarar aquela “mãe”, aquela “sagrada família” parte do abismo emocional do meu amigo.

Para minha tristeza tenho testemunhado a “sagrada família” corroer a velhice brasileira. Se você está pensando no seu próprio envelhecimento, se prepare, arrume uma mochila caso seja preciso fugir. Pois, infelizmente, pode ser um gesto em defesa da própria vida e/ou sanidade mental.

No filme “O último azul”, do Gabriel Mascaro, acompanhamos a saga de Tereza (Denise Weinberg) ao fugir do plano para a “velhice digna”, determinada pelo Estado e a “sagrada família”.

Certos projetos de família são abusivos, especialmente com a pessoa idosa que pode sofrer com: a omissão de cuidados básicos necessários para saúde e bem-estar; violência emocional e psicológica, incluindo isolamento social – quando é afastada de quem ama, dos amigos, da sociabilidade a que tem direito.

A pessoa idosa pode sofrer por parte da “sagrada família” de abuso financeiro e patrimonial, que é quando existe uma exploração indevida de seus recursos financeiros e bem materiais. Nem sempre o idoso fica desprovido de condições econômicas de uma hora para outra. A violência patrimonial é algo que pode acontecer na vida de alguém ainda jovem, na vida adulta, e pode se intensificar na velhice. Cuidemos!!!! “É preciso estar atento e forte”. Violência física e sexual é ainda uma realidade presente.

Certa vez, ao ler a antropóloga Mirian Goldenberg, passei a ter mais clareza do quanto a violência contra idosos mora mesmo dentro de casa.  Em 2024, o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania registrou 74.620 casos de denúncia de violência contra idosos. É um horror.

Ainda vivemos a desgraça do silenciamento das violências para não abalar a “sagrada família”. E pela nossa própria falência institucional no cuidado com a pessoa idosa. Salvo, raríssimas exceções.

Enquanto você tiver consciência fuja. Fuja de relações abusivas. De onde quer que elas venham. Fuja enquanto pode. Olhe mais criticamente para a “sagrada família”, o “amor incondicional”. “o amante/a amante”. Fujamos, porque ninguém merece viver explorado, nem morrer a míngua. Família nenhuma vai te levar para o Céu.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 19 de dezembro de 2025.