O Brasil é um país religioso. E de pluralidade religiosa. Muitas pessoas e grupos fazem coro no país ao defender a família, a pátria, e evocar o nome de Deus. O Brasil também é um dos países mais violentos para uma mulher viver, mesmo que parte da riqueza produzida aqui se relacione com a força do trabalho feminino que produz, e, ainda, reproduz.
Juliana Soares, do Rio Grande do Norte, infelizmente, é mais uma mulher violentamente agredida e cuja cena do horror que viveu circulou esta semana entre aplicativos de redes sociais, telejornais e jornais. Os 60 socos proferidos contra ela pelo namorado dentro do elevador estamparam noticiários. As câmeras de vigilância de condomínios, apartamentos, casas e ruas brasileiras traçam por si mesmas a cartografia social do horror.
A comoção é instantânea, quase generalizada, viraliza, evoca emoções fortes... as mídias, vez por outra, convocam especialista para tentar refletir sobre a questão. Mas por quais razões persiste no imaginário brasileiro a ideia de que, nas entrelinhas, sempre há uma motivação para um crime desta natureza, um crime de ódio, de misoginia?
Eu fico me perguntando que sociedade é esta que nos odeia e nos presenteia no Dia das Mães e dos namorados/namoradas. Fico só pensando no efeito mimético das informações maldosas repletas de julgamentos entranhados e, por vezes, impronunciáveis.
Desfigurado foi o rosto de mais uma mulher. No passado, os rostos femininos eram desfigurados a ferro. O que hoje nos desfigura é nossa condição humana, e nosso direito de viver uma vida em paz?
Qual a matéria prima da misoginia, da cultura do ódio contra o feminino? Há ainda quem culpe as mulheres pelo machismo estrutural... e, no senso comum, a gente escuta dizer: mas quem educa os homens são as mulheres.
Sessenta socos dentro de um elevador. Quais são as cartilhas de alfabetização do ódio ao feminino que estão circulando entre nossa sociedade que dão sustentabilidade a essa barbárie? Alguma coisa acontece há tempos, porém há claramente um agravamento do contexto de vulnerabilidade das mulheres e meninas.
O que dizem as músicas que circulam massivamente sobre as mulheres e os homens? De que é feita a nossa imaginação sobre homens e mulheres neste mundo, neste planeta?
Parece que a gente anda regurgitando um lixo simbólico faz é tempo. E o puritanismo talvez mascare bem a banalidade do mal que se reproduz na gamificação da vida, trazendo o inaceitável para dentro das nossas subjetividades e do nosso tempo de existir.
Escutando o nome de Juliana Soares, lembrei de Violeta Formiga, de Márcia Barbosa, de Ariane Thaís, Sandra Gominde, Eloá Pimentel, Angela Diniz, Bríggida Rosely de Azevêdo Lourenço... Precisaria, lamentavelmente, de muitas páginas, para nomear as vítimas de feminicídio no país.
Mas o que quero não é listar, nem fazer estatística, porque, inclusive, elas mostram que, em 2024, atingimos o maior número de feminicídios desde a tipificação desse tipo de crime, em 2015, no Brasil. “Enquanto isso, durmo e falsamente me salvo... enquanto isso, dormimos e falsamente nos salvamos” (Clarice Lispector).
Quem dera que a gente se empenhasse numa arqueologia do cotidiano para desentranhar da nossa vida as camadas das violências profundas que pairam entre o dito e o não dito.
A violência não se apresenta mais timidamente, sutilmente. Ela vem navegando na superfície. Ela está escancarada. Nas telas, ela se repete, excessivamente, como a estética pornográfica.
Contraditoriamente, há uma semântica que corrobora com a violência praticada contra as mulheres que segue pouco tocada, que está no campo do sentido, do simbólico, da cultura, da comunicação, da educação e das crenças.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 1º de agosto de 2025.