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A indivizível equação vida-morte

publicado: 02/09/2021 08h00, última modificação: 02/09/2021 10h03


Não que eu quizesse falar. Mas a semana começou com gosto amargo. Nem consigo entender, apenas povoou a imaginação a questão da morte. Talvez pelo fato de que a realidade pesa muito em certas horas. Abrir uma rede social durante a semana, e quase todos os dias sentir o impacto pela perda de alguém, seja por Covid-19, ou por outra causa e constatar o fato de viver inúmeras despedidas atravessadas por distâncias.

Tempos terminais, tempos inconstantes, intermitentes. Coincidentemente essa semana fiquei pensando em Max Weber. Ora, tanta coisa para pensar, e me chega uns lampejos dos textos weberianos. Decido ir na biblioteca e encontro aquele livro que li há quase dez anos, e repaginando dou conta do fato de que ele morrera em consequências conjunturais da Grande Gripe. Já que em 1920, na Europa, pairavam as consequências da gripe, seja pelas privações que a população enfrentou, inclusive a falta de alimentos... Imediatamente penso nas consequências da Covid-19 no Brasil, e não consigo vislumbrar grandes perspectivas, nem a ideia de que a pandemia passou, ou passará tão cedo por aqui.

Deparo ainda com outras temporalidades para pensar as questões de vida, mas também de morte, observando, no que se trata da morte, que as temporalidades ultrapassam a noção racional e cronológica. Atravessamos um momento de ruptura com os rituais de despedida. E fico me perguntando como milhares de pessoas ao longo do Planeta estão construindo sua simbologia, seus rituais para dar conta de tamanho luto.

Talvez aqui, no movimento da escuta quem sabe, esteja esboçando minha própria resposta ao luto mais recente que tive que atravessar. Por isso imagino a ideia de um jardim. E imaginar me faz transpor o vazio e me movimentar em direção à criação e a aceitação da indivizível equação vida-morte.

Se as doenças têm gênero, o cuidar da morte também. São em grande parte as mulheres que nos leitos de hospitais ou fora deles estão a partejar o renascimento de alguém num plano não material, não físico, não visível. Mulheres que diariamente saem de suas casas para acalentar corpos que se transmutam. Sim reviver exige transmutação. Mistérios difíceis de alcançar.

Enquanto a gente observa o movimento do mundo, o frenesi, as correrias, há mulheres que estão olhando alguém que degusta silenciosamente os últimos sabores da vida, as cores e os sons. O morrer é um tempo que pode ser partilhado com alguém, assim como a experiência do viver.

Num contexto de uma pandemia, quando nossos rituais de despedida coletiva foram rompidos, qual caminho simbólico percorrer? Como estar sensível às questões do morrer quando a naturalização da morte violenta ritualizada nas telas provoca diariamente uma insensibilidade profunda e indiferença às dores, sofrimento, e provoca opacidade, nos tirando da beleza da construção de uma cultura de paz?

Quando essas questões flutuam na imaginação fiquei lembrando de filmes emblemáticos para mim, “A Partida”, de Yojiro Takita, um dos filmes mais belos que ví, e trata de um violoncelista desempregado que consegue um novo emprego numa “agência de viagens”(uma funerária). Quantos tabus ainda precisamos quebrar para falar sobre a morte. Outro filme também precioso sobre o tema, é o argentino “Truman”, dirigido por Cesc Gay, e protagonizado por Ricardo Darín, o único talvez capaz de dizer tanto em sua performance como Julían e seu momento de despedida. Como nos filmes citados, a morte nos faz chorar, mas também rir, um sorriso profundo cuja dimensão só entende quem a vive.

São muitas as feições do morrer. Uma sociedade como a nossa deve estar moribunda. Não generalizo, nem desenho o apocalipse. Muito pelo contrário. Essa semana relendo um texto que conheci em 2000, presente na antologia Del Cielo a la Tierra: una antología de teología feminista (Mary Judy Ress, Ute Seibert, Lene Sjørup,Sello Azul, 1997), de autoria de Audre Lord, encontrei muitas pistas sobre o renascimento das forças criativas em pleno Caos.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa de 02 de setembro de 2021.