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Encontro com Mia Couto

publicado: 17/10/2025 08h18, última modificação: 17/10/2025 08h18

por Sandra Raquew Azevêdo*

Realizar um sonho é assim como afagar a nossa alma e de repente voltar a esperançar. Sempre tive vontade de escutar pessoalmente o escritor moçambicano Mia Couto. Conheci seu trabalho lendo primeiro “O Fio das Missangas”, a convite do Carlos Azevêdo que quase sempre chega ofertando pérolas da literatura.  A epígrafe do livro assim está escrita: “A missanga, todos a vêem. Ninguém nota o fio que, ao colar vistoso, vai compondo as missangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo”.

Nas palavras do escritor, através de seus contos, romances, sua prosa poética eu ia, no meu infinito particular, enxergando um pouco melhor o fio invisível da minha própria costura de vida. Eu tinha mesmo era muita vontade de me embolar com todas aquelas palavras que faziam sentido profundo para mim.

Da leitura das obras, a exemplo de “Cada homem é uma raça”, “Vozes anoitecidas”, “Estórias abensonhadas”, “Se Obama fosse africano?”, entre outras que li - e releio - eu fui acompanhando mais o itinerário biográfico de Mia Couto e sua trajetória literária e política.

Movida por um encantamento tentei algumas vezes estar presente em eventos em que ele fosse conversar com seus leitores e leitoras. E vivi neste sentido alguns desencontros. Até finalmente, poder encontrá-lo recentemente na Bienal do Livro de Pernambuco, juntamente com a poeta Cida Pedrosa.

Lembro de uma vez em Salvador, quando participava do Congresso Luso Afrobrasileiro de Ciências Sociais, e o Mia Couto faria a conferência ‘Um Mar Vivo: Como Jorge é Amado em África”, para encerrar o evento. Na época fiquei muito desolada porque tive que voltar poucas horas antes da conferência começar. Foi uma tristeza sem fim aqui por dentro.

Ano passado, morando em Setúbal, tive a feliz notícia que o autor iria lançar seu novo romance, “A cegueira do rio”, na Livraria Culsete. Meu coração se encheu de muita alegria e esperança. Finalmente encontraria o escritor. O que não aconteceu, porque outra vez eu estaria em trânsito na data do lançamento.

Ainda assim, o carinho de Rita e Raúl, organizadores do evento, fizeram com que pudesse estar de alguma forma presente ao lançamento de “A cegueira do rio”, através de uma singela carta que deixei para o escritor. Ao chegar peguei o romance, autografado pelo autor, que me acompanhou num dos trajetos mais íntimos que já fiz.

Em Recife, no último sábado, Mia Couto disse que se sentia acanhado, porque sempre achou, e acha, que, o mais importante é o livro, a obra, e não o autor. E faz sentido. Por outro lado, é igualmente relevante o sujeito cuja opção pela escrita está no centro de sua existência e, através dela, costura o tempo, as histórias, tece horizontes, “faz acordar os homens e adormecer as crianças”, como assim escreveu o poeta Carlos Drumond de Andrade.

O escritor ou escritora não como celebridade. E sim pessoa entranhada pelas palavras, que faz do ato de escrever a gestação de mundos, ecoando narrativas ancestrais e cosmovisões que alcançam gerações.

Eu me reconheço na obra do Mia Couto. Percebo sabedorias compartilhadas. Sinto pertença às cosmovisões ali estão presentes. Pertença ao modo de dizer, ao humor e a ironia como um ato de desconstrução das certezas e de formas de dominação.

A Cida Pedrosa no último sábado falava da fluidez da escrita do autor. E num momento singular, Mia Couto falava sobre sua relação com os rios: “as marés invadiam a cidade ao fim da tarde, então minha mãe dizia, volta para casa antes da maré. Era como se eu tivesse num mundo meio líquido, meio sólido. E isto me fez muito bem, porque eu aprendi a não ter medo de às vezes ficar sem chão. Acho que é um desafio que todos nós temos hoje. Aprendemos a ter certezas, aprendemos a entender. Deixamos de ter essa atitude que os africanos têm muito. Os africanos não têm medo de não saber. Sempre pensam que há qualquer coisa de invisível que determina o nosso destino, e essa aprendizagem eu tive desde criança”.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 17 de Outubro de 2025.