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Germinar a utopia

publicado: 07/11/2025 09h44, última modificação: 07/11/2025 09h44

por Sandra Raquew Azevêdo*

Durante a semana, envolta numa avalanche de informações sobre a COP 30 soube da partida de pessoas queridas. O cientista belga Armand Mattelart, o cantor e compositor Lô Borges e a ativista pelos direitos das mulheres, Clara Charf.

Uma semana um pouco assustadora. Porque o ritmo frenético dos dias foram atropelando os sentimentos e as necessidades mais elementares, como beber água por exemplo.

A notícia sobre a partida de Lô Borges bateu em mim assim como uma avalanche. E ecoou um alerta: você precisa realmente parar um pouco!  Há dias soube do adoecimento de um dos integrantes do Clube da Esquina. E considerei verdadeiramente a gravidade da situação.

Não era familiar ou amiga íntima do compositor. Mas a notícia de sua partida mexeu com outros lutos que atravessei. A experiência do luto é um capítulo importante em nossa história de vida.

As composições de Lô Borges e Milton Nascimento, do Beto Guedes, do Márcio Borges, do Fernando Brant são parte de nossa história de vida. Quem nunca, sendo brasileiro de minha geração, se emocionou com as músicas do Clube da Esquina?

Foram duas as oportunidades de escutar ao vivo o Lõ Borges. Em Campina Grande, no Projeto Seis e Meia. E em Recife, no show “Lô Borges convida Milton Nascimento” durante o Festival Coquetel Molotov.

De repente parece que o tempo está desalinhavando as coisas. Vai desaparecendo deste mundo as pessoas de referência. As pessoas que a gente amou muito.

Ao escutar as pessoas cantando as canções do artista em sua homenagem me senti unida a elas nesta sensação de vazio que o luto traz, e na necessidade de amparo. Que bom seria se cantássemos mais juntos. Se nos reuníssemos só para cantar. A vida da gente está precisando de mais canções soltas ao vento. Cantar no banheiro, no karaokê, nas ruas...

Precisamos profeticamente cantar sobre o “vale de ossos secos”.  Catarmos sobre nós mesmos... “porque se chamava moço/ também se chamava estrada/viagem de ventania/ nem lembra se olhou pra trás/ ao primeiro passo, asso, asso, asso, asso... Porque se chamavam homens/ também se chamavam sonhos/ E sonhos não envelhecem... ( Clube da Esquina N0 2 – Lô Borges e Milton Nascimento).

Onde estão nossos sonhos? Onde residem meus sonhos? Foi movida pelo sonho de uma sociedade mais justa, inclusive para as mulheres, que Clara Charf viveu. Nascida em Maceió, tendo vivido no Recife e em tantos outros lugares. A conheci muito anos depois já notadamente uma ativista pelos direitos das mulheres, tendo contribuído imensamente para a conquista de muitos direitos para nós brasileiras. Clara também, requereu à Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos o reconhecimento da responsabilidade do Estado na morte de seu esposo, o líder comunista Carlos Marighella.

O cientista belga Armand Mattelart foi movido também pelos sonhos. Foram eles que o moveram até a América do Sul, junto com Michelle Mattelart. Imaginou uma comunicação a serviço da democracia, do povo, da justiça e paz. Para isto trabalhou muito. Desde a França, mas sobretudo atravessado pela experiência no Chile de Allende.

Em 2008 tive a honra de encontrar e conversar com Armand e Michelle Mattelart, durante a Conferência de Mídia Cidadã. Ela grande pesquisadora nos estudos sobre Mulheres e Mídia. Duas pessoas simples, gentis, afetuosas.  Muito diferente dos “intelectuais” arrogantes que a gente encontra por aí.

Além da grande contribuição que trouxeram à minha formação na vida, trouxeram junto consigo afeto e Esperança.

Clara, Lô, Armand, quanta gratidão por suas histórias. Quanto respeito às suas lágrimas, aos desafios que enfrentaram. E reconhecimento por todo lindo caminho traçado por vocês nas escolhas que fizeram e por tudo que doaram que chegou a tantas gerações.

E que tudo de mais belo que semearam em nós, mesmo não estando fisicamente aqui, possa fazer germinar o que a gente conhece por utopia.  

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 7 de novembro de 2025.