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Independência

publicado: 21/03/2025 09h00, última modificação: 21/03/2025 09h00

por Sandra Raquew Azêvedo*

Por vezes, eu tenho medo da minha intuição, a quem escuto com muito respeito. Digo isto porque, certa vez, passando por Campina Grande, na adolescência, habitou-me o sentimento de que um dia iria morar por lá.

Anos depois estava chegando à cidade, sem ter feito muitos planos. Vinda mais precisamente de Cuiabá. Foi a partir desse maio de 1998 que minha história com a cidade construiria-se em ciclos por quase oito anos de intensas vivências na antiga Vila Nova da Rainha.

Poderia contar dezenas de histórias desses diferentes ciclos de idas e vindas em Campina Grande como habitat. E escrevendo esta crônica quem sabe começo uma jornada de escrita com base nessa experiência complexa que representou em minha vida um rito de passagem para vida adulta.

Em 2003, depois de uma jornada de solteirice, retorno à Campina Grande para morar na Rua Independência. Esses dias, antes de dormir, de súbito me veio toda cartografia física e afetiva do pequeno trecho que vivi num dos momentos em que morei na cidade.

Da primeira vez que saí de Campina Grande, em 2000, estava tecendo meus sonhos de continuar estudando, ir fazer mestrado, ter maior autonomia. Pois bem, retornei à cidade em 2003, com um mestrado em curso, um filho nos braços, vivendo a experiência de luto e um estresse pós-traumático que na época eu nem sabia o que era.

O apartamento da Rua Independência, no 412, abria as portas para receber uma mulher em carne viva. Talvez aquele momento fosse um dos mais críticos de minha existência. Mas foi ali que milagres foram acontecendo...

Primeiro milagre era o de ter forças para continuar a viver atravessando uma dor indivisível. E na intimidade da casa e da vida cotidiana as camadas de sofrimento iam lentamente dando espaço para um consolo. Havia um filho ainda a amamentar e depois desmamar. Existia um texto de dissertação a ser concluído e iria começar uma outra experiência de trabalho meses depois na Articulação do Semiárido Paraibano.

O apartamento foi o melhor que já morei. Isto porque pela primeira vez na vida tive a sensação de habitar um teto todo meu, como diria a Virginia Woolf. Não pelo fato de ser um apartamento maior e sim porque nele encontrei um quartinho pequeno, depois da área de serviço, que passei a habitar durante horas do dia e das madrugadas.

Eu habitei aquele quarto como se fosse uma astronauta sozinha no espaço a observar e navegar pelas galáxias. Não conto as vezes que me atravessei no pensar e nas coisas boas que pude ver nascer ali, naquele quarto que abria uma dimensão importante da minha vida criativa.

Nunca vou esquecer da vizinhança da rua, que era de fato um trecho muito pequeno que começava num cruzamento da Avenida Floriano Peixoto e desaguava há poucos metros na Rua Oswaldo Pessoa. A menor rua que já morei.

Eu tracei pontos assim para me orientar: numa ponta o homem que vendia galeto assado, na outra o mercadinho de seu Humberto. De um lado, o antigo Hospital Regional, do outro a descida para a Embrapa. Na minha cabeça era assim. Com o tempo fui agregando outras referências: a locadora de vídeo de Ivan e a outra de Lavoisier, na Rua Nilo Peçanha (a rua paralela). Uma padaria. A casa de seu Ferreira, que fabricava velas. A casa de Marlene que me ensinou a cozinhar nhoque. O serviço de copiadora de Flávio. A pracinha da Floriano, onde passava o ônibus para o Sertão.

A rua era interessantíssima para mim. Em especial pela cumplicidade das poucas mulheres que davam o ar da graça na calçada, na hora de comprar o pão à tardinha. Entre elas minha querida vizinha Iráh. Ela era bem baixinha, magrinha, cabelos pretos e bem curtinhos. Cuidava de um irmão que necessitava de uma atenção especial. E sabia fazer mil coisas engenhosas, inclusive retelhar sozinha uma casa.

Certa vez, num domingo, indo para a igreja, deparo-me com a visão daquela mulher pendurada no telhado de vestidinho rosa. Eu me espantei. Quando nos olhamos, caímos as duas na gargalhada. Soltei: Iráh vou chamar o Corpo de Bombeiros para te tirar daí de cima dessa casa. Aí ela largou: Mulher!!!!! Tú já vais levar esse menino para igreja dos crentes?! E a gente não fez mais nada a não ser cair na risada.

Nunca chamei os bombeiros para tirar minha vizinha/cúmplice do telhado. Achava o máximo! Lá naquele quarto todo meu, pequenino, e que trazia tanto transbordamento fui atravessando a minha tristeza e entendendo melhor a natureza da própria existência humana tão breve.

Naquela Rua Independência, ia tratando de ressuscitar, a aceitar as perdas, a fazer dali um lar, a amar, criar um menino e escrever meu primeiro livro. 

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 21 de março de 2025.