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Ofício de aprender

publicado: 19/09/2025 08h22, última modificação: 19/09/2025 08h22

por Sandra Raquew Azevêdo*

Por vezes eu me assusto muito com o tempo. Outro dia um pensamento me saltou. O fato de que no próximo ano já se passaram trinta anos do encerramento da minha graduação em curso de jornalismo.

O tempo também me parou para me dizer da primeira vez que entrei numa sala de aula como professora. Eu estava na pré-adolescência, e me convidaram para narrar histórias para crianças. A sala de aula ficava aos fundos de uma igreja. Na minha aula inaugural, compartilhada com uma jovem um pouco mais velha que eu, tivemos que improvisar um pouco. Fizemos de uma mesa um cenário de teatro de bonecos, e começamos.

Há um certo momento, no meio da história, eu tive uma crise de riso que também contagiou a minha colega. Nem entendia que o riso era expressão de um certo nervosismo diante da plateia. O riso foi cedendo, e dando lugar a imaginação e a beleza inocente de poder manusear com as mãos os bonecos, e criar as vozes das personagens ali mesmo.

Pouco tempo depois, já adolescente, entrava em outra sala de aula. Agora com garotos e garotas de minha idade. As histórias contadas pareciam mais sérias e eu estava cultivando o hábito de ler jornais, por causa de uma assinatura que havia ganho numa gincana. A igreja era a mesma, mas para os meus olhos adolescentes começava a ter contornos diferentes. E eu gostava muito de saber sobre Martin Luther King, de aprender a tocar violão, e cantar música pop e ver filmes junto com meus amigos Eripetson Lucena e Ivontonio Viana.  

Nesse mesmo tempo de adolescência, a sala de aula se deslocou para as ruas de minha cidade. Junto com a querida Débora Lucena, aos domingos, a gente ia para um bairro da minha cidade natal para continuar contando histórias para crianças e uns poucos pré-adolescentes. Alguns anos depois eu reencontraria a sala de aula das ruas, num certo trapiche do bairro de Tambaú.

Diria que o trapiche de um dos bairros turísticos da Capital paraibana foi minha aula inaugural de sociologia, sem Marx, Durkheimer ou Weber. Era uma “sala de aula” composta por meninos, adolescentes e jovens, que dormiam na maior parte ao relento. Sem um livro sequer fiz uma pós-graduação da vida em sociedade. Ali perdi um pouco mais a inocência, diante da percepção de muitas violências e seus impactos na vida da gente. Na prática estava aprendendo sobre racismo estrutural, violência urbana, cidadania e revoluções cotidianas.

Havia o mar, o infinito das tardes. Não havia medo. Apenas, em algum momento do final do dia, ao chegar no quarto que dividia com Silvânia Carvalho, me habitava um pouco de tristeza. Era inevitável às vezes. Mas também, junto aos meus Capitães de Areia, a poesia por vezes fazia morada. A poesia era a liberdade inviesada daqueles garotos. Era a beleza de vê-los nadar ao entardecer naquelas águas. Era a alegria de, com eles, conhecer seus territórios de origem, onde suas histórias iam se tornando mais claras para mim.

O tempo nos provoca. Como um espelho vai trazendo paisagens significativas. Por isto, ando vez por outra, reencontrando essas paisagens do ofício de aprender, que me levou as periferias da cidade, também como voluntária, ministrando aulas de reforço.

Muita gente sequer tem ideia da diversidade de salas de aulas desse país desigual. Por vezes, nesses lugares invisíveis aos olhos de muita gente, testemunhamos verdadeiros milagres.

Sempre considerei muito a vocação como jornalista. E o tempo me fez ver também minha vocação para aprender. Talvez no meu oceano dispersivo e hiperativo, eu nem tenha parado para refletir mais profundamente sobre isto. Agora, que preciso escrever um memorial sobre o percurso no ofício de aprender, essas imagens têm saltado como golfinhos no horizonte das horas.

Outro dia, reencontrei uma aluna querida, do tempo em que, estudante de jornalismo, ministrei aulas de redação para poder continuar estudando. Manu Coutinho, hoje filósofa, professora e contadora de histórias, num lindo gesto de agradecimento, desatou em mim uma primavera.

*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 19 de setembro de 2025.