Parece que nas últimas semanas decidi me descosturar. E tudo agora parece em suspenso. É muito estranho inclusive se dar conta de que no presente sua mãe está no plano das lembranças. Fico me questionando se esta geração terá algum tipo de memória, algum registro mais consistente de si mesma, dessa fração frágil de segundo que é vida.
Eu sei para que fui escrever algumas lembranças. Não era algo premeditado. Apenas previsível que tivesse que me sentar no tear das palavras, de frente para a balança dos signos. Só que, ao fazer isso, a sensação é de que cada palavra, mesmo que temporariamente, vai me tirando um pouco de mim, me desalinhavando, ponto por ponto. Às vezes penso que ao final vai restar apenas linhas desfeitas espalhadas pelo chão.
Parar para escrever, quando a escrita é movimento. Revirar as caixas de fotografia. Desembaralhar papéis. Tocar camada por camada dos diferentes tempos de mim. Aquarela diluída no oceano. Sentir-se muda. E vez por outra mergulhar na saudade das boas ilusões.
Quem no mundo inventou essa coisa estranha chamada escrita? Pior que isto é saber que mesmo que não se registre, as palavras aparecem como os peixes que repentinamente saltam à superfície das águas.
Agora já nem sei mais se escrevo porque quero ou preciso. Se o faço, por quê? Um pouco depois eu desejo que as palavras hibernem. Quando a gente remexe nas palavras da própria história e revisita lugares que de certo modo não estão mais lá, sentimos o quanto precisamos de um tempo consigo. Porque entrar num poço tão cheio de tudo e retornar encarando um certo vazio, uma saudade, um passado, o não vivido, o inacabado e o fim, não é fácil.
Juntar as letras, desenhar uma linha, costurar um pensamento encontrando fragmentos de sentido. Pausar... com a sensação de se estar tirando um novelo de dentro do estômago. Ir escapando à passagem das horas e dos prazos que vão se cumprindo.
Colocar a lista infinita de músicas para tocar. Na madrugada pedir socorro ao Bob Dylan, meu padroeiro das palavras insones... capaz de ressuscitar com sua gaita, na calada da noite, um estado de quietude necessária até que os sonhos me habitem outra vez.
Enquanto isto minhas esperanças andam brincando de esconde-esconde. Por isto suspendi por uns dias qualquer pensamento sobre o futuro. Por enquanto estou preferindo atravessar a noite como se estivesse conduzindo um carro numa longa estrada pouco iluminada e vazia, escutando Lay, Lady, Lay...
Há uma certa nudez no percurso das palavras. Quando essas horas chegam eu gostaria mesmo era de saber desenhar. Mas só rabisco palavras em papéis avulsos, cadernetas, telas, areia, guardanapos de papel.
Vez por outra aposento algumas cadernetas, e sigo insistindo com as palavras avulsas que vão se encontrando em alguma correnteza da vida. Por isso procurar saber de quem escreve sobre os rituais de passagem da escrita.
Recentemente encontrei entre os meus papéis um cartão de Natal que presentei à minha mãe aos trezes anos de idade. Reencontrar um registro de palavras trinta e nove anos depois é como um religar uma menina que já lhe habitou e uma mulher que você nem sabe ao certo como está.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 24 de Outubro de 2025.