Hoje eu preciso de paz. Mais até do que todos os dias. Até gostaria muitíssimo de não ter nada a fazer. Nenhuma responsabilidade a dar conta. Nem correria, barulho, telefone tocando.
Não gostaria de responder qualquer coisa a quem quer que seja. Queria estar apenas diante de minha alma despida. Quem sabe de frente para o mar de Tabatinga e poder caminhar por um tempo sem rumo, sem palavras quaisquer.
Caminhar inundada, deixando escorrer o excesso dos pensamentos. Sem escutar nenhum tic-tac. Hoje completam 22 anos que vi minha mãe pela última vez. E que ela se despediu de mim com um beijo na testa, sabendo intuitivamente, sem sequer dizer uma só palavra, que seria nosso último instante.
Nossa cerimônia de adeus foi repentina e curta. O que veio depois disto é que foi quase infinito. De lá para cá sinto que estou melhorzinha. Não dói, mas acreditem, ainda choro silenciosamente. E lembro com riqueza de detalhes de todos aqueles momentos.
O que me faz falta é a voz dela, porque ainda que distante sempre esteve constante, presente.
Do entardecer do dia 16 de junho de 2003 para cá aconteceram tantas coisas... Impermanência. Talvez eu carregue comigo uma inconformidade por não a ter visto envelhecer. A longevidade é um pouco de degustação da esperança.
Atualmente eu acompanho alguns amigos e amigas no cuidado com seus pais já na maturidade. Percebo que, mesmo diante dos desafios de um Estado que não oferece o mínimo para um envelhecimento mais digno, há um esforço individual e por vezes coletivo de cuidar.
Observo ainda os riscos de que minha geração não seja cuidada por quem quer que seja. Tendo em vista o egocentrismo das novas gerações e a precarização dos direitos sociais, inclusive a aposentadoria. E já entre grupos de amigos e amigas conversamos sobre as redes de cuidados para lidar com o envelhecimento e a finitude.
Assumir os cuidados paliativos na minha experiência de vida foi muito forte inicialmente. Aprendi no cru, como se diz lá no sertão. Mas depois fui tratando de cuidar das camadas mais íntimas, mais profundas que se relacionavam com as perdas em si mesmo, e os desdobramentos delas na vida cotidiana.
Depois eu fui lendo um pouco mais. E me desviando um pouco de ideias tolas sobre envelhecimento, e pensando criticamente de como uma sociedade consumista rentabiliza do nascer ao morrer.
Quando a gente é criança no sertão não escondem nem minimizam nossa finitude. Ler a ação do tempo em nós e ao nosso redor vem primeiro que ler o be-a-bá. Até chegar à alfabetização o cuidado comunitário inscreveu em nós muitos saberes. Acredito que tenham sido eles que me salvaram em situações muito críticas da vida.
Hoje, que é uma data que marcou meu tempo de viver, eu faço na escrita uma narrativa cheia de saudade. Repleta de desejo de nos meus sonhos voltar a abraçar mainha. Há uma vida possível que habitamos quando sonhamos. É uma outra lógica, ou não precisa se fazer um problema lógico. Não sei separar sonhos de existência.
Das coisas que guardo comigo é que minha existência trouxe felicidade à minha mãe. Que sempre relatava a alegria de eu ter nascido mulher. E foi na cumplicidade feminina que nossa história foi construída.
Guardem dentro de si o sorriso de quem vocês amam. Talvez em algum momento ajude a enxugar as lágrimas e seguir adiante.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 20 de junho de 2025.