Na última segunda-feira muitas pessoas no Brasil ligaram a televisão no horário da telenovela Vale Tudo. Havia a crônica da morte anunciada, conhecida do público que agora acompanhava uma nova versão da célebre novela que foi sucesso em 1988.
As telenovelas brasileiras são um testemunho do nosso conservadorismo, das desigualdades sociais e transformações culturais e políticas. São também um espaço de alienação e de construção de representações sociais contraditórias.
Já tivemos grandes marcos na teledramaturgia e somos capazes de grandes feitos. Hoje cambaleamos um pouco diante da competitividade dos serviços de streaming e da pressão do marketing digital das plataformas. O trabalho de atores e atrizes tenta salvar o horário televisivo, pois em cena entregam tudo de si. Além de equipes de produção que esteticamente revelam seu melhor. Mas é importante dizer do empobrecimento das tramas.
Algo me assustou um pouco na segunda-feira: se na primeira versão existia ali uma pulsão de morte voltada ao extermínio de uma personagem que representava a vilã, nesta “nova” versão havia uma naturalização do uso de armas nas cenas.
Entre as cenas de sábado e segunda-feira, onde se anunciava e se efetivava o extermínio da vilã Odete Roitman (Débora Bloch), havia uma saturação da presença de armas de fogo de toda qualidade. Confesso que fiquei muito incomodada com aquilo.
A questão do armamento da sociedade brasileira é muito séria, gravíssima. Nos últimos anos acompanhamos uma crescente e os reflexos disto na violência urbana, no aumento dos casos de feminicídio e extermínio de jovens e adolescentes.
Lembro ter visto, pelo material que circulou na internet, depoimento de Beatriz Segall, atriz que protagonizou a Odete Roitman, em 1988, sobre a repercussão da morte de sua personagem. Ela assim alertava:
“O Brasil inteiro está discutindo quem matou Odete Roitman, o Brasil inteiro discutiu esses meses, os últimos meses se ela merece ser castigada ou não merece ser castigada. (...) Agora uma coisa que ninguém pensou foi o seguinte: O Brasil inteiro está aceitando o assassinato. Um assassinato é um assassinato. Porque se alguém comete um crime, esse crime tem que ser julgado. Então ela teria que ser acusada dos crimes que cometeu, teria que ser presa pelos crimes que ela cometeu, teria que ir a julgamento e ser condenada. E nesse país não existe pena de morte. Pensar que ela ser assassinada é o grande castigo, vai ser a catarse nacional, nós estamos admitindo o que é pior. Pior que a pena de morte que é um assassinato de Estado, um assassinato pela lei. Eu acho que o pior do que isto é: que nós estamos admitindo o esquadrão da morte, os justiceiros. Ela vai ser justiçada, nós não podemos aprovar isto. Nós temos que aprovar a Lei”, (depoimento da Beatriz Segall em entrevista ao Ziraldo veiculada pela TV Brasil).
O depoimento da atriz no final dos anos 1980, nos liga ao Brasil de hoje atravessado pela alta mortalidade por armas de fogo, que representam 68% dos atendidos no sistema de saúde em virtude de agressão armada. Não dá mesmo para naturalizar, banalizar, que personagens tenham nas suas casas armas de fogo e as ostentem em horário nobre da televisão brasileira, como se tudo fosse resolvido na bala.
Numa esfera pública movida pelos memes, percebemos grande esvaziamento de importantes debates que foram subtraídos da teledramaturgia pelo protagonismo da propaganda impregnada na narrativa, atravessando as cenas dos atores e atrizes, lembrando o filme ‘Show de Truman’.
Ainda assim, pela boca do povo, a reedição da novela segue como sucesso pelo engajamento nas redes sociais que provoca. Mas sempre uma coisa me chama muito a atenção, a música de Cazuza na abertura, e na voz de Gal Costa, que segue sendo um grande enunciado: Brasil.
*Coluna publicada originalmente na edição impressa do dia 10 de Outubro de 2025.