Três anos me separam do meu irmão do meio. Se hoje a diferença parece pouca e seus cabelos brancos já o fazem parecer até mais velho do que eu, na época isso era o bastante para nos fazer um estrangeiro ao mundo do outro. Era o batizado da nossa irmã caçula e a cerimônia caiu em plena festa de Santo Antônio, padroeiro da cidade. Lembro bem disso, porque havia um parque em Solânea e mal conseguíamos nos concentrar no ritual, doidos para correr até os brinquedos.
Ao final do batismo, talvez para não atrapalhar ainda mais os planos dos adultos, alguém nos deu uns trocados e nos mandou para o parque. Apesar de brigarmos muito nessa época, desde sempre levei muito a sério a incumbência de cuidar do meu irmão. A condição de mais velho talvez só tenha se invertido mais tarde, quando ele cruzou uma série de limiares antes de mim: foi o primeiro a viajar pra fora do país, o primeiro a fazer uma pós-graduação, o primeiro a arranjar um emprego estável, o primeiro a casar e ter uma filha.
Àquele tempo, era só uma criança de cinco anos que eu, me julgando muito crescido, carregava como um apêndice meu de casa para a escola, da escola para a casa, eventualmente o livrando de brigas e o salvando de atropelamentos, porque, diferente do adulto que ia se tornar, era irascível e irresponsável a ponto de meus pais confessarem que temiam que não fosse chegar vivo aos dezoito.
Cuidar do meu irmão no parque envolvia demovê-lo, por exemplo, da ideia de ir nos brinquedos maiores. Hoje não seria preciso: a própria ideia de duas crianças desacompanhadas dos pais num parque talvez já não seja razoável mesmo no interior, onde a experiência da infância ainda é um tanto diferente da da capital, mas entendam, estamos falando dos anos 1980 e de uma cidade com 30 mil habitantes do interior da Paraíba. Valia tudo. Se a criança de oito anos quisesse subir numa roda gigante com o irmão de cinco, boa sorte para eles dois, ninguém iria impedir.
Ocorre que, desde ali, sempre fui um sujeito medroso. Havia essas barcas de madeira temerosas, puxadas por uma corda, nas quais os meninos da minha idade competiam para ver quem conseguia colocá-las de ponta-cabeça primeiro, dando um giro completo em torno do eixo já meio bambo, sem que tudo se desmanchasse. O risco era real. Contava-se que, naquela festa mesmo, em anos passados, uma criança havia naufragado no ar, de uma daquelas barcas, e até hoje andava por aí sem um rosto.
A história não dissuadiu meu irmão, que se recusava a ir nas barcas menores. A bem da verdade, elas eram pequenas mesmo para o seu tamanho, mas sustentei o argumento: ele só podia ir naquelas, o que queria dizer que eu só tinha coragem de ir naquelas, e fim de papo. Enquanto meia dúzia de crianças voavam como pêndulos num bólido de madeira, prestes a se despedaçar, meu irmão e eu nos balançávamos numa jangadinha na marola, a meio metro do chão.
Óbvio que fomos motivo de chacota ao descermos, quando me dei conta de que alguns dos marujos imprudentes eram não só da nossa escola como da minha classe e agora nos provocavam para o desafio supremo: encarar a Monga, a mulher gorila, que vinha diretamente das savanas de Ilhéus para povoar nossos sonhos com a promessa de uma mulher seminua, invadindo depois nossos pesadelos na forma de uma criatura violenta, coberta de pelos, solta num trailer tão capenga quanto as barcas de madeira.
Eu ia dizer que não, mas meu irmão disse primeiro que sim e eu não ia passar vergonha na frente do grupo. Acompanhei, cheio de uma falsa valentia, sua marcha triunfal. Na fila da Monga, quem pulava fora do trailer antes do fim era vaiado como o pior arregão do planeta. Ouvíamos o barulho dos corpos se chocando contra as paredes do trailer, a locução implorando: “Calma, Monga! Calma!” e eu tentava disfarçar o horror segurando meu irmão pelos ombros, enquanto ele parecia mais curioso que apavorado, rindo também dos fugitivos.
Na nossa vez, restou-me apelar para a razão e para a consciência do rapazote na portaria: “Pode, moço, uma criança dessa idade entrar?”. “Pode, pode…”, ele disse, para meu desespero. Eu, acovardado, tornei a perguntar: “Tem certeza? Não é proibido? Não vai dar ruim pra você” E ele: “Sim, sim, cala a boca, ninguém tá vendo, vai entrando…”. E pronto: nos empurrou pra dentro e lá estávamos nós, diante da jaula. Monga ainda em sua forma humana, toda ela num biquíni minúsculo, exibindo suas curvas voluptuosas. Os mais velhos assobiavam e eu, de novo, tentava me esconder atrás da bravura do meu irmão. Lembro da música, da transformação, do locutor de novo implorando, tentando domar a fera, da jaula se abrindo e do tumulto se instaurando e de uma mão peluda roçando o meu pescoço.
Foi o que bastou. Saí correndo, puxando meu irmão pelo braço. Lá fora, as vaias e o rosto conhecido de um adulto. “Tive que sair”, justifiquei. “Meu irmão tava se cagando de medo”, apontei pra ele, que para minha surpresa não negou, não me desmentiu. Apenas calou, me protegendo e guardando aquele segredo até se esquecer dele e amadurecer, talvez já ali, muito antes de mim.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 05 de outubro de 2024.