Semana passada voltou a circular pelas redes sociais um vídeo, originalmente feito nos anos noventa, em que o repórter de alguma televisão carioca entrevistava pessoas na rua desfilando preconceito contra nordestinos.
“É tudo ‘mendingo’. Todos os ‘mendingo’ são Paraíba e só bebe cachaça”, dizia uma senhora com uma criança no colo.
“A senhora não acha que se mandassem eles de volta para lá ia acabar com a miséria aqui no Rio?”, provocava o repórter, ouvindo exatamente o que queria ouvir: “De repente, acabava, né?”
Uma coisa me ocorreu vendo aquele vídeo e resolvi comentar na página. O perfil chamava-se @nostalgicamenteoficial, mas a associação desse tipo de conteúdo à nostalgia só me veio a ocorrer depois, quando meu comentário já tinha ultrapassado mais de trezentas curtidas e eu já sofria todo tipo de humilhação por ter escrito a seguinte frase:
“Sabe o que é lindo? O que mais vejo agora são sudestinos vindo para cá trabalhar de Uber”.
E, sim, pelo menos a metade dos motoristas de Uber com quem viajo, quase diariamente, não é da Paraíba. É alguém de outro estado, que veio fazer turismo em João Pessoa, encantou-se com a cidade, e veio morar aqui e trabalhar no aplicativo enquanto não encontra um outro emprego.
Apesar da ironia inicial, meu comentário não fazia qualquer julgamento sobre o fato. Era uma constatação feita não só por mim, mas por muita gente que conheço. Uma generalidade, portanto (o primeiro ingrediente atirado no caldeirão do preconceito, devo admitir). Houve, lógico, quem achou o comentário elitista e xenofóbico, entre a enxurrada de réplicas que eu recebi reproduzindo mais ou menos as mesmas palavras daquela senhora, quase trinta anos atrás.
Resolvi aprofundar um pouco mais a questão. Disse que a cordialidade é um traço do nosso povo, e que eu já andei por muitos lugares sendo chamado de “paraíba” ou de “baiano” para saber como o preconceito dói: eu não seria capaz de reproduzir o mesmo tratamento nem diante de tamanha estupidez. Sempre que um uber me diz que não é daqui, pergunto há quanto tempo chegou. Se chegou há mais de dez anos, já merece a cidadania. Se chegou há menos que isso (como geralmente é o caso), dou as boas-vindas. E a conversa vai por esse caminho.
Ocorre que um usuário (com o perfil convenientemente fechado) printou meu primeiro comentário e, maldosamente, enviou a imagem, via mensagem privada, para o perfil de todas as empresas com as quais eu possuo algum vínculo empregatício. Ele tecia certas acusações que, a meu ver, eram a projeção de um pensamento que vários dos sudestinos que comentavam ali também tinham: se mudar de São Paulo ou do Rio de Janeiro (mesmo sendo duas cidades superpopuladas, que já não conseguem garantir a mínima qualidade de vida aos seus moradores) para uma cidade como João Pessoa (um lugar aparentemente pacato, mas ainda considerado “pobre” por muita gente) era uma derrota ou algo muito pior que isso. Trabalhar de uber por aqui, então, nem se fala. Era uma derrota dentro da derrota.
Alguns chegaram a dizer que eu estava fazendo fanfic quando falava de um assunto sério: a inversão do fluxo migratório que temos acompanhado daqui, agora. Resolvi, então, apelar para os dados do IBGE: em 2022, João Pessoa foi a capital que teve relativamente o maior aumento populacional no Brasil (mais de 110 mil habitantes, para uma cidade que não chega a um milhão de moradores). Natal e Recife, capitais vizinhas, registraram queda: 6,52% na capital potiguar; e 3,17% na capital pernambucana. Há quase uma década, em 2015, um em cada dez moradores de João Pessoa já era de outros estados. Não encontrei dados novos, mas a julgar pelo crescimento populacional (e o fator que aqui chamamos de “Juliette”), esse número já é bem maior.
Era uma quinta-feira, e enquanto eu tentava explicar aos meus empregadores que a xenofobia estava nos vídeos e nas respostas aos meus comentários, Bolsonaro era indiciado pela Polícia Federal pela abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Não deu nem para comemorar.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 30 de novembro de 2024.