As vozes dos cantadores nordestinos narravam a saga do povo do Cariri, por meio de suas dores como em o “Último Pau-de-Arara” e “Meu Cariri”. Tão certo quanto sua sina de luta contra a seca era a sua necessidade de, em algum momento, ter que deixar para trás a sua terra natal. Hoje, são os filhos de Cabaceiras que afirmam: “Só sai daqui agora quem quer”. E cada vez menos gente quer partir. Mais do que isso: eles estão voltando.
Há 25 anos, a vida em Cabaceiras e em outras 30 cidades que compõem o Cariri era marcada por um intenso e crescente êxodo populacional. O período de 1991 a 2000 foi especialmente severo, com uma queda de 30% no número de habitantes da cidade. Era Cabaceiras deixando escorrer seus moradores pelo mapa abaixo. Numa inversão de tendência improvável, de 2000 a 2022, houve um crescimento de 24%, indo no sentido contrário de metade dos municípios paraibanos que encolheram no último censo. E a corrida pelo couro tem tudo a ver com isso. 
A ruptura com o pau de arara veio entre gritos e berros, seguindo as lições do bode e da cabra, conhecidos pela convivência com o Semiárido e por serem motivo de preconceito, que sempre foi extensivo aos seus criadores. Os descendentes desses criadores viraram produtores agropecuários e fizeram o rebanho de caprinos crescer 137% em 11 anos, de forma que, agora, são quase quatro animais para cada habitante de Cabaceiras. Segundo o Sebrae, o PIB dos municípios do Cariri quadruplicou, de R$ 13,8 mil, em 2002, para R$ 56,2 mil, em 2021.
Essa reversão nos destinos do Cariri tem várias explicações. A história de enfrentamento de um desafio do tamanho dessa região, que inclui Monteiro, o maior município paraibano, também revela que não havia solução única ou que não incluísse todo mundo. Contudo, sempre que se pergunta quando os principais marcos dessa mudança foram implementados, a resposta costuma ser a mesma: há 25 anos. O período de tempo coincide com a implantação do Pacto Novo Cariri.
Mas por lá ninguém acredita em coincidências. O programa é uma iniciativa de desenvolvimento territorial coordenada pelo Sebrae Paraíba, que reúne instituições públicas como prefeituras reunidas em consórcios e o Governo do Estado, além de entidades privadas e várias lideranças comunitárias organizadas em torno de uma mesma estratégia: fortalecer as cadeias produtivas locais, especialmente a caprinocultura, o artesanato e o turismo.
Quase todo o couro da cidade vem do curtume coletivo Miguel de Sousa Meira. Um local monocromático, onde a cor da terra se mistura com o pigmento marrom do couro. Outra característica que domina a paisagem é o cheiro forte do local. Poucos homens pareciam se incomodar com isso, o que só reforça que a vida não deixou de cobrar muito esforço desde cedo do povo do Cariri. Ali, todos seguem as instruções de José Carlos Castro, o Carlinhos, de 70 anos.
Bisneto de curtidores de couro, ele herdou o ofício que se transmitia de pai para filho, mas que entrou em declínio quando o Sertão começou a mudar. Ele lembra, sobretudo, os anos de 1950, quando o couro artesanal perdeu espaço e, mais tarde, os anos de 1980, com a chegada das motos, quando se reduziu a demanda pelo ofício de sua família. O golpe mais duro veio em 1987, com a morte repentina de seu pai em um acidente de moto. Como filho mais velho de 16 irmãos, Carlinhos assumiu a responsabilidade e se deparou com um cenário de ruína: quase todos os curtidores haviam fechado suas portas e a tradição corria o risco de desaparecer.
“Quando eu cheguei no curtume, eu vi isso. Para mim, era um desastre que estava acontecendo. Todo mundo fechando. Então, eu convidei aqueles que estavam ainda na lida para a gente se unir e começar a fazer um trabalho de base, mas não aceitaram. Eles diziam que sociedade nem com a mulher de casa prestava”, conta Carlinhos. No ano seguinte, ele convocou os poucos curtidores que ainda resistiam, buscou parcerias fora da comunidade e encontrou, na universidade em Campina Grande, a oportunidade de aprender novas técnicas.
Carlinhos passou meses estudando uma forma de curtir o couro a partir de uma planta local, o angico, cuja seiva possui um tanino que faz a produção ser barateada e sustentável. A técnica vegetal substituía os produtos químicos que poluíam os rios. “O tanino é que faz o angico ser nobre. Ele é a importância maior para esse sistema de curtimento”, defende. Carlinhos voltou para casa decidido a transformar quase todos os processos. Em 1998, com a criação da cooperativa, o couro de Cabaceiras voltaria a conquistar compradores e o trabalho artesanal virou símbolo da recuperação social e econômica de toda a região.
A produção, que antes se contava em centenas de metros, alcançou hoje 26 mil metros mensais, tornando-se a maior do Brasil em curtimento vegetal. “O jovem não queria mais esse trabalho. O jovem era completando seus 18 anos, indo embora. E, com esse trabalho, ele conseguiu já resgatar vários jovens, várias famílias que voltaram e que estão trabalhando aqui conosco”, acrescenta. Ao lado da técnica, Carlinhos preservou o espírito comunitário: o que era motivo de vergonha se tornou orgulho.
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região estava entre os mais baixos do mundo. Em 1991, ele era de 0,297. Em 2010, o bode já tinha carregado em seu couro melhorias na educação, longevidade e remuneração, fazendo o índice subir para 0,596. “São 400 pessoas trabalhando no artesanato de couro e faturando cerca de R$ 2 milhões por mês. Essa atividade tem mais recursos que a prefeitura. Se você oferecer uma cesta básica a alguém aqui, vão indicar uma outra pessoa para receber”, afirma o ex-prefeito e consultor do Sebrae, Tiago Castro.
População de Ribeira transforma tradição em negócios
Em Ribeira, distrito de Cabaceiras, existem 57 ateliês de artesanato em couro, que lá são chamados de oficinas. Uma das maiores é a Oficina do Saber, que funciona em uma escola desativada. É um local efervescente como qualquer chão de fábrica, com pessoas se locomovendo rapidamente para realizar suas tarefas entre pilhas de couros espalhados em longas mesas e filas de máquinas de costura. Luís Castro, coordenador do espaço, está nessa atividade há quase quatro décadas.
“Todo dia fabrico entre 150 e 250 peças. Já saíram daqui sete oficinas criadas por pessoas que aprenderam conosco e foram montar o próprio negócio. Muitas sandálias que vocês encontram por aí começaram aqui”, conta. Luís Castro também segue uma tradição. “Minha tataravó já trabalhava com couro em 1863. Meu avô era curtumeiro, meu pai também”. Quando a esposa dele foi trabalhar na cidade, trouxe os três filhos pequenos para dentro da oficina. Hoje, os meninos dividem o espaço com uma nova geração de aprendizes, que parecem seguir seus próprios rumos ao dar continuidade a um custoso trabalho secular.
Bem menor é o ateliê de Cleiton Farias, fundador da Oficina Econativas. O espaço criado a partir de puxadinhos em sua propriedade particular está em expansão e mal cabe a produção diária que tem hoje. Quando deixou Cabaceiras em 2003, sonhava em conquistar estabilidade financeira no Rio de Janeiro. Passou 17 anos entre diferentes trabalhos como motorista por aplicativo e vendedor de carros, mas nunca abandonou o desejo de voltar. Em 2019, ao perceber que a cidade havia se transformado, decidiu voltar.
Começando com uma única máquina de costura em casa, hoje ele reúne, na Econativas, 13 pessoas, entre familiares, amigos de infância e jovens de municípios vizinhos. A produção média chega a 500 pares de sandálias por semana, vendidas no atacado para destinos que vão principalmente para João Pessoa, mas também para São Paulo e até para o exterior. “Eu já tenho uma vida aqui que meus patrões lá no Rio não tinham. Hoje viajo duas, três vezes por ano com minha família. Para mim, de tudo, a melhor coisa foi melhorar a qualidade de vida”, afirma Cleiton.
O filho de 14 anos já trabalha ao seu lado, e ex-funcionários abriram as próprias oficinas com apoio dele, que conseguiu também trazer seu irmão de volta do Rio de Janeiro. “Hoje, com essa transformação, deu orgulhosamente para dizer: não tem um desempregado no lugar da gente”, diz. Ainda com pedidos em atraso e o desejo de dobrar a produção, ele aposta que o futuro da oficina também passa pelo digital, espaço em que projeta abrir uma loja virtual para ampliar mercados.
O couro vai do curtume para as oficinas e das oficinas para a lojinha da Arteza, a principal cooperativa de artesãos da cidade, que reúne os produtos de 80 oficinas locais. O presidente Ângelo Mácio diz com certeza e sem empáfia: “Falar em Cabaceiras e não falar em Arteza é não conhecer a cidade”. Claudiene Farias, uma das artesãs fundadoras da cooperativa emenda repetindo, ao lado de seu filho que já trabalha concentrado em uma máquina de costura, um lema que todos conhecem na região: “Couro é ouro!”.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 8 de novembro de 2025.

