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para livrar aperto

Trabalhadores recorrem a “bicos”

publicado: 15/09/2025 08h17, última modificação: 15/09/2025 08h17
Levantamento revela que despesas básicas consomem quase toda a renda de profissionais PJ ou com carteira assinada
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Auxiliar de serviços gerais e mãe solo, Mirella Taíse concilia dois trabalhos para sustentar a filha e manter as contas em dia | Foto: Leonardo Ariel

por Priscila Perez*

A cada 10 trabalhadores brasileiros, cinco não conseguem chegar ao fim do mês com o salário na conta. O retrato, traçado pela pesquisa Saúde Financeira e Bem-Estar do Trabalhador Brasileiro 2025, realizada pela SalaryFits, empresa da Serasa Experian, revela ainda que 54% dos profissionais, tanto com carteira assinada quanto atuando como pessoa jurídica, acabam buscando alternativas para equilibrar o orçamento. Com alimentação, moradia e outras despesas básicas consumindo quase toda a renda, a saída para muitos tem sido multiplicar a jornada de trabalho ou recorrer ao crédito.

No caso de Mirella Taíse de Souza, auxiliar de serviços gerais e mãe solo, o endividamento não tem vez em sua planilha de gastos. A rotina começa de madrugada, por volta das 4h15, quando sai de casa para cumprir o primeiro turno da jornada. Duas vezes por semana, ela encara um trabalho extra em um laboratório, antes do expediente principal, no seu local de trabalho, com o objetivo de garantir o sustento da filha de 15 anos, que cresceu vendo a mãe equilibrar os “pratinhos” para fazer o salário render.

Segundo ela, esse reforço de renda cobre não apenas o essencial, como aluguel e mercado, mas também permite pequenos momentos de lazer às duas. “Hoje em dia, ter uma renda extra ajuda a não passar sufoco. É muito difícil se manter com salário-mínimo, principalmente para quem tem filhos”, reflete. Por isso, independentemente do valor do salário, a dica dela é simples: organizar o orçamento e “não gastar além do que seganha” para evitar instabilidades financeiras.

Disciplina e organização

Apesar da disciplina, a auxiliar de serviços gerais faz parte da estatística escancarada pela pesquisa. Hoje, 49% dos brasileiros que não conseguem cobrir as despesas mensais apenas com o salário recorrem a rendas extras para não terminar o mês no vermelho. Outros 36% apoiam-se em empréstimos, muitas vezes mais caros do que suportariam. Mirella, por sua vez, foge desse caminho ao optar pelo esforço dobrado: evita cartão de crédito e recusa dívidas, priorizando gastos mais essenciais. “Eu não devo a cartão. Nem tenho um. Tudo meu é via Pix. Se eu quero comprar alguma coisa, vou juntando até obter o valor à vista”, conta orgulhosa. O cuidado com o orçamento é tamanho que até a filha adolescente já internalizou o exemplo. “Ela senta comigo à mesa e eu explico as nossas prioridades. O que sobrar a gente usa para lazer”, complementa, destacando que tudo é feito com transparência e pé no chão.

Equilibrar custo de vida e orçamento é a chave

A consciência financeira ainda é exceção. Para se ter ideia, apenas dois em cada 10 trabalhadores brasileiros afirmam ter total controle sobre a vida financeira, segundo a mesma pesquisa. Para o economista Rafael Bernardino, o desafio passa por uma combinação de fatores: custo de vida elevado, uso excessivo do crédito e falta de planejamento. “As pessoas, em geral, se endividam muito. Olham apenas a entrada do recurso, sem avaliar o que terão que pagar no fim, e acabam comprometendo parte do salário com dívidas”, afirma.

O ideal, como ele bem explica, seria não gastar mais do que 70% do que se ganha, deixando pelo menos 10% para a formação de uma reserva. “É preciso anotar tudo. Pegar o salário líquido, o valor que realmente entra na conta, fazer a listagem de tudo o que se gasta, o que é obrigatório e verificar o saldo. Aí sim, sabendo o quanto sobra, o próximo passo é controlar as contas”, orienta o especialista. Ou seja, quanto mais controle, menos sustos no fim do mês.

Organizar o orçamento por semanas também pode ser uma estratégia eficaz para mantê-lo sob controle, de acordo com Rafael. Ao dividir o salário em quatro partes e estabelecer um teto de gastos semanais, fica mais fácil visualizar o que pode, ou não, ser feito. “Funciona, sim. Você pega o salário, divide por quatro e vê que verba tem por semana e não ultrapassa isso. Quanto mais detalhados forem os gastos, melhor.” Dessa forma, o trabalhador consegue impor limites mais claros ao consumo, evitando surpresas ao longo do mês.

Mas o controle individual nem sempre dá conta, especialmente quando se vive em família. Para Rafael, a ausência de diálogo sobre dinheiro dentro de casa ainda é um dos principais entraves para o equilíbrio financeiro. “Dependendo da situação, o marido não sabe quanto a mulher ganha e vice-versa”, observa.

Sem transparência, o planejamento fragiliza- ao longo do mês. “É precisose que haja rateio de despesa e as pessoas participem. Tem gente que diz ‘minha mulher paga a água e a luz, o resto é comigo’. Mas sem dialogar, isso é um erro.” Nesses casos, o economista defende que o orçamento seja construído em conjunto, com clareza sobre o que entra e o que sai.

Cartão de crédito é o  vilão do endividamento

O cartão de crédito pode até parecer uma solução rápida diante das despesas mensais, mas é também um dos principais atalhos para o endividamento — principalmente quando não há qualquer controle. O perigo não está só no gasto, mas na ilusão de que ele pesa menos, até a fatura chegar. “Normalmente, o indivíduo que compra com cartão não faz bem a conta. Quando vamos a um restaurante e pagamos em dinheiro, olhamos o preço do prato. Mas quando é com cartão, não. Você compra e acumula”, explica.

E o problema cresce ainda mais quando a fatura não é quitada por inteiro. Embora o parcelamento dê a sensação de alívio imediato, a prática pode transformar pequenas compras em dívidas crescentes.

O economista Rafael Bernardino faz o alerta. “A grande massa de endividados começou com o cartão de crédito. Você paga um valor mínimo e os juros são maiores do que o valor devido. E a dívida vai crescendo cada vez mais.” A dica é simples e direta: compre à vista sempre que possível e não use o cartão como extensão da renda. A falsa sensação de poder de compra, no fim, costuma sair muito mais cara.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 13 de setembro de 2025.