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Lúcia Guerra, presidente da Comissão de Instalação do Memorial da Democracia

“Nunca condenamos os perpetradores de tortura no Brasil”

publicado: 26/02/2024 09h27, última modificação: 26/02/2024 09h27
Gestora comenta os preparativos para lembrar os 60 anos da Ditadura Militar
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Lúcia Guerra, gerente executiva de Documentação e Arquivo da Fundação Casa de José Américo e presidente da Comissão de Instalação do Memorial da Democracia - Foto: Roberto Guedes

por Taty Valéria*

No ano em que se rememora os 60 anos da instituição do Golpe Militar no Brasil, as Comissões da Verdade de todo o país preparam programações alusivas à data com o objetivo de trazer o tema à pauta de debates. Na Paraíba, as ações incluem a publicação de obras relativas ao tema, apresentações culturais itinerantes e uma série especial, que será transmitida pela Rádio Tabajara.

Em entrevista ao Jornal A União, a professora Lúcia Guerra, gerente executiva de Documentação e Arquivo da Fundação Casa de José Américo e presidente da Comissão de Instalação do Memorial da Democracia, comenta sobre o que está sendo programado e o apoio oficial do Governo do Estado. Mestre em História pela UFPB e UFPE e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, Lúcia Guerra, que integrou a Comissão Estadual da Verdade e Preservação da Memória do Estado da Paraíba, avalia o contexto atual e aponta os riscos, ainda presentes, à democracia brasileira.

A entrevista

Em 2024, completamos 60 anos do golpe que instituiu a Ditadura Militar no Brasil. Por que esse tema ainda é considerado um tabu?

A ditadura militar durou 21 anos e, durante esse tempo, foi construída todo uma narrativa como se isso tivesse sido positivo para o Brasil com o “milagre econômico” escondendo o que acontecia nos porões da ditadura. Essa imagem foi construída e se manteve mesmo após o término da ditadura, justamente por conta das características conservadoras da nossa sociedade. O silenciamento durante esses 21 anos, com toda a estrutura que foi montada na educação para criar um pensamento nesse sentido. Isso perpetuou essa visão e toda essa parte da repressão violenta ficou como sendo apenas de pequenos grupos, como se não fossem uma realidade, como se não tivesse impacto em toda a sociedade brasileira, quando na verdade, houve sim! A nossa transição da ditadura para a democracia foi muito limitada, com muitas restrições.

A Lei da Anistia contribuiu nesse processo de silenciamento, uma vez que não houve punição para os torturadores do regime?

A nossa transição da ditadura para a democracia foi muito limitada, com muitas restrições

Em parte eu concordo com isso porque a Lei da Anistia foi sancionada ainda no período da Ditadura. Uma lei que vinha sendo reivindicada pelos familiares e o estado não atendeu aos anseios da sociedade. Não era essa Lei da Anistia que se pretendia, mas foi a lei possível.

De todo modo, consideramos a Lei da Anistia como o primeiro passo para a transição da ditadura para a democracia. Foi um primeiro passo limitado e nossos processos têm sido sempre assim, com limitações justamente por conta da correlação de forças dos conservadores e dos progressistas. Assim foi na Lei da Anistia. Assim foi com o movimento das Diretas Já.
Essa tem sido a características dos nossos processos históricos, sempre com acordos. Isso não quer dizer que não houve resistência, mas na hora de fechar os acordos, sempre a correlação de forças e ele pende muito mais para o lado conservador. Acho que foi tudo isso que contribuiu para que tema não viesse à tona.

Onde se insere a educação formal no apagamento dessa parte da nossa história?

Os livros didáticos continuaram abordando muito pouco sobre o tema e isso contribuiu para que essa temática não viesse à tona. Movimentos de familiares, mobilizações sociais aconteceram, mas tiveram dificuldade de se inserir, vamos dizer assim, no sistema educacional, algo montado durante a ditadura que ainda está presente e não se desmontou. Essa é grande questão.

Gerações e gerações de jovens passaram pela escola sem ver essa temática. Às vezes, algum livro didático abordava o tema, mas o sistema, como era montado, nunca se chegava no final do livro, nunca se chegava na ditadura, numa estratégia de abafamento desse assunto, dessa temática.

Qual importância de trazer o assunto de volta à pauta? Quais os caminhos?

Temos que colocar na pauta do dia e temos que tratar dessa questão, e por quê? Porque isso é um reforço à nossa democracia. Nosso processo de transição, de uma ditadura para um sistema democrático, não foi concluída e um dos elementos desse processo é a memória, a verdade, e a Justiça, e esse pilar da Justiça nunca foi feito. Nunca condenamos os perpetradores de tortura. Outros países como o Chile e a Argentina fizeram, mas o Brasil nunca enfrentou essa questão. Se não enfrentamos o problema, ele vai ficar o tempo inteiro ali, à espreita. A qualquer momento, pode voltar e nós tivemos aqui algumas possibilidades de retrocesso.

A senhora se refere ao bolsonarismo?

O movimento estava guardado. As pessoas só não estavam se expressando. Mas, é preciso dizer que esse é um movimento internacional. Infelizmente, esses movimentos de direita, esses movimentos conservadores, já se articulavam e vieram à tona em vários países. Foi essa conjuntura internacional que também deu força para que as pessoas aqui tivessem coragem de se posicionar. A figura de Bolsonaro foi catalisadora, mas não é algo isolado do Brasil.

Porém, cada país tem sua própria história, e dependendo do momento e das condições, esses movimentos afloram e podem se estabelecer ou não. Nós tivemos condições de não deixar que se firmasse, mas está o tempo todo aí, pronto para se colocar de novo.

Ainda sobre trazer o tema da Ditadura Militar à pauta e as mobilizações nesse sentido. O quem vem sendo construído?

A Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba (CEVPM-PB) foi criada em 2012, com a finalidade de buscar o esclarecimento das graves violações de direitos humanos praticadas por agentes públicos. Essa comissão congrega várias instituições, como o Memorial da Democracia, a UFPB com o Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos, a Fundação Margarida Maria Alves, o Memorial das Ligas Camponesas...

Essas organizações se uniram para realizar uma programação para rememorar os 60 anos do Golpe Militar e nós conseguimos o apoio do Governo do Estado nessa programação, e é preciso pontuar que a Paraíba é o único estado que recebeu apoio oficial, um caso excepcional.

Nós vamos ter uma programação de espetáculos culturais que tratam dessas questões, com apoio da Secretaria de Cultura. Vamos ter a Cantata para Lagamar (um concerto no final da década de 1970 que foi censurado e passou a se apresentar nas igrejas), vamos trazer uma peça de teatro de Pernambuco, que vai percorrer algumas cidades do estado e a Secult vai contribuir para que a caravana faça esse percurso.

E iremos retomar uma exposição itinerante sobre a Ditadura Militar, em parceria com o Tribunal Regional Eleitoral, que já havia sido feita em 2014, nos 50 anos do Golpe. Nós vamos retomar essa exposição para fazer um circuito nos municípios, nas escolas.

Outra ação será a abertura de um edital para a publicação de três dissertações e três teses que trataram da ditadura, além de um livro com coletânea e artigos sobre a ditadura. Tudo isso com chamada pública e uma comissão editorial para realizar a seleção. A Secretaria de Cultura irá financiar e as obras serão impressas na Editora da União. Nossa expectativa é que até o segundo semestre, todas essas obras sejam publicadas. Além de uma série de 14 programas que serão exibidos na Rádio Tabajara e uma publicação especial no Jornal A União.
Sem dúvida, será uma grande contribuição do Governo do Estado em dar visibilidade ao tema.

Já que a senhora pontuou as ações da Paraíba nesses 60 anos de Golpe, como avalia a participação do estado durante a Ditadura Militar? Qual foi nosso protagonismo no que se refere à resistência?

A Paraíba tinha uma grande mobilização no campo com a organização dos trabalhadores rurais. Já existia uma legislação trabalhista para o trabalhador urbano, mas o trabalhador do campo continuava em um sistema de servidão, sem qualquer direito. Os trabalhadores do campo começaram uma grande mobilização em busca dos seus direitos, a partir das Ligas Camponesas e do Partido Comunista. Então, começou a surgir, por parte dos latifundiários, um temor muito grande que pudesse acontecer aqui uma revolta, como aconteceu em Cuba, apesar de ser um temor infundado porque não havia essa mobilização, nem essa conscientização, especialmente, por conta da repressão, que era muito violenta. Com o golpe, começa toda uma repressão, com desaparecimentos e assassinatos.

Então, nós vamos ter um Dom Helder Câmara, nós vamos ter um Dom José Maria Pires, que eram contra a mobilização popular, mas que quando acontece o golpe e este vai por um caminho de radicalização e de autoritarismo, eles próprios fazem um mea culpa e tanto Dom Helder, quanto Dom José, mudam de posição e vão apoiar essas pessoas perseguidas.

Voltando para os tempos atuais e o contexto político do Brasil. Como a senhora analisa a tentativa do Golpe de Estado em 2022?

Primeiro dizer que o golpe que se pretendia em 2022 não vingou porque não recebeu apoio dos Estados Unidos. Mesmo com um grande apoio social pró-Bolsonaro, não vingou. Outra questão relevante é que não recebeu apoio nem dos próprios militares, mesmo Bolsonaro sendo militar, mas era uma figura que não era respeitada, não tinha essa respeitabilidade e essa confiança.

Acho que foi importante esse apoio, ou não apoio. Mas temos que ter em mente que o movimento existe, não está morto.

Enquanto historiadora, como a senhora prevê a história que será contada deste nosso momento daqui a 50 anos? É possível analisar o que será escrito?

São muitas questões. Veja bem a nossa dificuldade: um governo de apenas quatro anos conseguiu desmontar muita coisa que vinha em curso, mesmo devagar. No campo dos Direitos Humanos, de uma educação em Direitos Humanos, das temáticas de justiça social, na educação... Isso vinha sendo construído a duras penas e devagar. Mas, mesmo assim, tivemos governos progressistas que implantaram essas políticas públicas de respeito aos Direitos Humanos, de conhecer nossa própria história e evitar o retrocesso.

Isso foi sendo construído em quase quatro governos e que começaram a ser desconstruídas a partir do governo Temer. Tudo foi desmontado e será difícil remontar novamente.
Então, eu acho que essa nossa conjuntura agora é de quem deu muitos passos para trás. Estamos em um processo de recomeço, retomada, e que continua lento. Esse trabalho de mobilização da população e dos movimentos sociais é fundamental porque isso contribui na correlação de forças.

Com esse Congresso conservador que nós temos, é preciso ter uma mobilização da sociedade que dê apoio e sustentação para que possamos construir um novo tempo de democracia no Brasil, um novo tempo de justiça social.

A minha perspectiva é que nós vamos retomar todo nosso trabalho, mas a passos muito lentos. Eu não sou muito otimista. O poder financeiro é muito forte. Esse trabalho de base é difícil de fazer. Leva muito tempo para você desconstruir todo uma mentalidade. Acho que isso não responde sua pergunta porque enquanto historiadores, somos muito mais voltados para analisar o que já aconteceu, e não o que virá.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 25 de fevereiro de 2024.