No início de abril, a Superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária na Paraíba (Incra) recebeu um novo gestor. Militante histórico do Partido dos Trabalhadores (PT), Antônio Barbosa atuou como advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e, portanto, já possuía um bom trânsito com movimentos sociais, sindicatos e federações ligados à questão das famílias do campo.
Em entrevista ao Jornal A União, o novo superintendente do Incra na Paraíba faz um balanço desse primeiro mês à frente do órgão, as consequências dos anos de desmonte nas políticas públicas, aponta quais os principais desafios para os próximos anos em relação à reforma agrária no estado, e quais as ações do órgão previstas para os próximos anos, com destaque para o Plano Emergencial da Reforma Agrária, programa nacional que será lançado nos próximos dias pelo presidente Lula.
A entrevista:
O senhor assumiu recentemente a superintendência do Incra na Paraíba. É possível fazer um apanhando da situação em que se encontrava o órgão?
De fato, o órgão já vinha funcionando de forma precária desde o governo Temer, ou seja, o desmonte começou em 2016 e permaneceu até 2022. Nesses últimos quatro anos, o Incra não desapropriou um único palmo de terra em todo o Brasil. Salvo engano, só ocorreram treze processos de desapropriação de terras em todo o país. Não mais que isso. Além do desmonte, o Incra realmente sofreu um ataque gigantesco do Governo Federal para que não funcionasse. Antes da pandemia, nós tínhamos cerca de 120 servidores locais. Esse número caiu para 80, dos quais metade desse contingente está trabalhando remotamente. Foi um desmonte de recursos e de servidores. O governo já está estudando realizar um concurso em nível nacional com 750 servidores, e isso representa poucos servidores para atender às superintendências estaduais. Mas para os próximos anos, já se vislumbra um concurso maior com três mil vagas.
A última atualização em relação às famílias assentadas na Paraíba é de 2017 e apontava um total de 14.645 famílias distribuídas em 314 assentamentos por todo o estado. Quais os números atuais? Qual a atual situação dos assentamentos na Paraíba?
Na Paraíba, nós temos 322 assentamentos e isso representa 15 mil famílias instaladas, ou seja, cerca de 100 mil pessoas. Essas famílias se encontram num grau de vulnerabilidade bastante acentuado porque, nesses últimos quatro anos, não tiveram acesso ao crédito, além de enfrentarem o fenômeno da presença das drogas, especialmente o crack, e o constante relato de assaltos. Tenho conversado com setores da Segurança Pública para encontrarmos um caminho para enfrentar essa problemática.
É uma situação com muita complexidade e os sindicatos e as associações são categóricos em afirmar que o Incra abandonou os assentamentos. O corpo de servidores não conseguiu acessar os assentamentos e, de acordo com a Fetag (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado da Paraíba) temos assentamentos que não recebem a visita de um técnico há 10 anos. A maioria dos assentamentos ainda sofre com a falta de residências, sendo que nos últimos seis anos, foram construídas apenas 500 casas.
Qual o principal déficit do Incra na Paraíba?
Cerca de 30% dos assentamentos na Paraíba ainda carecem de regularização: desde as medições finais das áreas, o tamanho da área comunitária e inconsistências na parte da terra do assentamento reservado para proteção ambiental, vendas e troca de lotes, entrada de pessoas no assentamento sem diálogo com as organizações.
São problemas que estão sendo diagnosticados e que precisam ser enfrentados. Há uma parcela significativa, especialmente, nos assentados com mais de 20 anos, que cobram a titularidade da terra. Porém, há uma tendência dentro dos movimentos sociais de que não devemos nos preocupar tanto com título definitivo, na verdade, o Direito Real de Uso, já que assegura às famílias o usofruto e a garantia de que aquela terra nunca deixará de ser dele e da sua família. Esse debate será tratado dentro do governo com muita responsabilidade.
É possível apontar a região do estado com maior número de assentamentos?
Temos alguma dificuldade de mensurar com precisão. É possível dizer que a região da Zona da Mata, entre o Litoral Norte e Sul, há uma concentração majoritária de assentamentos, especialmente, por ter muito acesso à água com riachos e rios. Existem alguns assentamentos na região do Alto Coremas (que concentra 60% da água da Paraíba), no Agreste, e muitos assentamentos no Brejo e na Serra da Borborema.
Existem áreas de conflitos de terras na Paraíba? Quais? Como o Incra pretende intervir?
De acordo com um levantamento feito recentemente, nós contamos com cerca de 30 ocupações de pequeno porte que ainda estão em processo de reconhecimento, vistoria, análise de solo, viabilidade para agricultura, a declaração oficial que a terra é improdutiva. Nós temos latifúndios na Paraíba com mais de cinco mil hectares improdutivos, ainda há uma concentração muito grande de terras nas mãos de uma minoria e essa pressão política e social vem numa crescente para que se corrija essas distorções no campo e para que se transforme esses latifúndios em distribuição de terras para a Reforma Agrária.
O objetivo principal é que tenhamos recursos e pessoal para realizar todos os levantamentos necessários para regularizar a situação desses assentamentos e reforçando que só as terras consideradas comprovadamente improdutivas podem ser destinadas à desapropriação, a partir de um processo longo e complexo.
É possível definir quantas comunidades quilombolas ainda esperam receber a titularidade das terras na Paraíba? Qual a situação desses quilombos?
Nós temos precisamente 44 comunidades quilombolas reconhecidas em todo o estado e mais 34 em processo de reconhecimento. Precisamos avançar no processo de regularização e, tão logo tenhamos os recursos suficientes para colocar as equipes em campo, esse trabalho será feito com o apoio da atuação do Ministério Público Federal, que tem feito um excelente trabalho nesse sentido. Uma das comunidades em processo de reconhecimento é a Comunidade Quilombola do 40, na cidade de Triunfo, na Serra da Gamela.
Na prática, o que muda para as comunidades quilombolas quando elas ganham a titularidade dos seus territórios?
Com o reconhecimento oficial, essa comunidade passa a fazer parte da infraestrutura do Governo Federal: recebe assistência técnica para plantio e pequenas criações de animais, insumos e sementes, crédito para produção e pode entrar no PAA – Programa de Aquisição de Alimentos, que garante o escoamento da produção dentro da própria estrutura governamental.
Qual o perfil social em termos de etnia, gênero, idade que o Incra dispõe sobre ao assentamentos na Paraíba e as populações que reivindicam assentamentos?
Esse perfil qualitativo nós ainda não temos, inclusive, vou pegar o questionamento e iniciar esse trabalho, apesar de que a predominância maior é de mulheres. Na Paraíba, temos um percentual de 51% de mulheres e isso se reflete também na presença no campo. Destaco também a presença da juventude, que tem orgulho do trabalho e de sua produção.
A discussão sobre a propriedade privada e função social da terra tem sido um dos pontos de tensão entre os governos de centro-esquerda e os demais setores da política. Integrando um governo desse campo político, o que muda na relação do Incra frente à reforma agrária e os conflitos fundiários?
É preciso deixar claro que o governo anterior criminalizou os movimentos sociais e a política de reforma agrária, tanto que foi amplamente repercutida a fala do ex-presidente quando afirmou que não entregaria um palmo de terra para Reforma Agrária, para as comunidades indígenas e para os quilombolas. O governo que chega foi eleito a partir de uma ampla aliança e destaco o principal ator nesse processo o vice-presidente Geraldo Alckmin, que teve um papel importantíssimo na eleição do presidente Lula, quando ele próprio se encarregou de ampliar o leque dos partidos progressistas de centro e de centro esquerda.
Então o tratamento anterior era de criminalização, de negar aos agricultores o acesso à terra, de fortalecer o agronegócio, os grandes latifundiários e os grileiros na Amazônia. O novo governo entende que há um problema social no campo - que não vem de hoje - que é crescente, e é necessário cuidar do homem do campo e promover a Reforma Agrária utilizando o instrumento legal que existe na própria Constituição, que assegura que as propriedades improdutivas são passíveis de reforma agrária. Há conflito porque ainda existem movimentos retrógrados, atrasados, que não evoluíram ao ponto de considerar que a terra precisa ser melhor distribuída. Mas o governo tem tido muita habilidade e sensibilidade no entendimento de que é preciso dar apoio e suporte a essas famílias que estão no campo e ampliar a reforma agrária.
As ocupações do MST em propriedades privadas com ou sem improdutividade e até em áreas pertencentes ao governo geraram desconforto e irritação ao governo Lula. Como tem sido esse diálogo com o MST na Paraíba?
Eu fui advogado de trabalhadores rurais durante anos, assessorei o MST e o CPT em algumas situações, sempre procurando dialogar com o Poder Judiciário e com o Ministério Público no sentido de buscar saídas inteligentes para resolver conflitos e digo que essas questões não se resolvem à força, mas com muito diálogo e com boa vontade.
Repito, ninguém segura a reforma agrária e a razão de ser do Incra, só existe a partir da necessidade de ser feita a reforma agrária no país. Se nós queremos um país que haja mais cidadania, qualidade de vida, educação e saúde e alcance um patamar de qualidade de vida aceitável, não se pode ser contra isso. Às vezes, há muito barulho e muita reação quando se ocupa uma terra improdutiva, não sabendo que aquela terra improdutiva poderá gerar riqueza para o país.
Na última semana, o MST realizou a 4ª Feira Nacional da Reforma Agrária e reuniu milhares de produtores de todo o país e que foi aplaudida por todo o Brasil. Ninguém pode ser contra uma ação dessas. O MST instalou escolas nos assentamentos, possui uma produção de arroz orgânico no Sul do país extraordinária. Temos uma relação muito boa porque o MST só ocupa propriedades improdutivas. O Incra está com as portas abertas para o MST, para receber suas pautas, que certamente serão pautas justas.
Além do latifúndio, um dos desafios do governo é a matriz de monoculturas, priorizando a produção de commodities (são produtos não industrializados vistos como globais que passam a ter seu preço definido pela lei de oferta e procura). Como o projeto de reforma agrária poderia melhorar a qualidade e o custo dos alimentos consumidos pela população?
A agricultura familiar representa 70% do que o brasileiro consome. É fundamental para que nós tenhamos produtos de qualidade, vindo da agricultura familiar e tradicional atuar diretamente na incidência dos agrotóxicos mediante um programa forte e rigoroso de assistência técnica para o pessoal do campo. Na Paraíba, nós não temos laboratórios de análise de solo. O nosso pessoal planta sem conhecimento do seu solo.
O Governo Federal está para anunciar o Plano Emergencial da Reforma Agrária nos próximos dias. Nós temos muitas ideias e um planejamento prévio, mas vamos aguardar o plano emergencial que certamente vai trazer ações essenciais e garantir o desenvolvimento normal do processo da reforma agrária.
É possível apontar quais os principais desafios do Incra na Paraíba?
Estamos sem recursos e sem pessoal. Na próxima semana estaremos em Brasília (DF) para conversar com o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, para tratarmos sobre os recursos para o Incra-PB, que serão destinados ao orçamento para que o órgão volte a funcionar adequadamente. O principal desafio atualmente é fazer com que o órgão atue dentro de sua capacidade total. Estamos levando um diagnóstico para a Presidência, vamos nos reunir com todas as superintendências para que tenhamos um debate geral sobre essa problemática em todos os estados.
Quais as principais ações estão sendo planejadas para 2023?
Planejamento pressupõe que tenhamos recursos para viabilizar. A partir do Plano Emergencial da Reforma Agrária, acredito que voltaremos a agilizar os processos de desapropriação de áreas improdutivas, assentar os agricultores familiares e agricultores ribeirinhos, com a certeza de que todos serão beneficiados pelas políticas do Governo Federal.
Espero conversar com o governador João Azevêdo nos próximos dias para que façamos parcerias na questão da assistência técnica, distribuição de cestas básicas, áreas que precisam de perfuração e construção de poços. Também pretendo realizar, o mais rápido possível, uma audiência com o Tribunal de Justiça, enquanto órgão parceiro, para tratarmos especialmente sobre a evidência da violência contra a mulher nos assentamentos. Em que pese essa situação de distanciamento e falta de assistência, o Incra ainda possui muita respeitabilidade, especialmente pelos recursos e pelas políticas públicas durante os governos de Lula e Dilma.
*Entrevista publicada originalmente na edição impressa de 21 de maio de 2023.