por Beatriz de Alcântara*
Eliane Lima dos Santos, de 71 anos, é comumente conhecida como Eliane Potiguara. Professora, formada em Letras e Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela é uma referência no ativismo pela garantia dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas. Apesar de ter nascido em solos cariocas, a história de Eliane tem as raízes fincadas na Paraíba, no território Potiguara nas proximidades do município de Rio Tinto.
Indicada ao Nobel da Paz pelo Projeto Mil Mulheres em 2005, a primeira escritora indígena do país, bem como a primeira a receber o título de Doutora Honoris Causa pela UFRJ, a trajetória de Eliane é marcada pelo pioneirismo. Com muito trabalho e suor, a ativista conseguiu abrir portas que, antes dela, eram consideradas impensáveis para uma mulher, indígena e com origens nordestinas.
Depois de muitos anos de movimentação e militância direta pela causa, participando de atos públicos, passeatas e demais manifestações, ela hoje se concentra em produzir para a literatura indígena. Além disso, a escritora se dedica também a entender as lacunas de sua própria história e resgatar um passado nunca respondido de sua família. Em uma conversa com a reportagem do Jornal A União, Eliane Potiguara falou sobre sua atuação, seus projetos e, principalmente, sobre a sua vivência.
A entrevista
A sua história tem raízes aqui no Estado da Paraíba, principalmente com seu bisavô Chico Sólon. Como isso começou e o que aconteceu?
O que minha avó e minhas tias avós falavam é que meu bisavô, Chico Sólon, tinha desaparecido. Naquela época, o desaparecimento se dava por conta da neocolonização. Esses neocolonizadores tinham uma fábrica de algodão, em Rio Tinto, onde a mão de obra indígena era utilizada quase como mão de obra escrava. Naturalmente, meu bisavô foi convocado para trabalhar, porque naquela época pegavam os indígenas, e aquelas pessoas que não queriam eram mal vistas e, se questionasse, havia todo um processo de contestação por parte de quem chamava.
Nesse processo do meu avô não querer trabalhar e lutar contra essa violência, ele desapareceu e a gente conclui que ele foi exterminado. Conta-se que, naquela época, quem não aceitasse trabalhar e reivindicasse seus direitos, eram colocados para o extermínio com sacos na cabeça e jogados ao mar, com pedras amarradas nos pés.
Após isso, como sua família se estabeleceu no Rio de Janeiro?
A minha família chegou ao Rio de Janeiro e foi morar, literalmente, na rua, na zona do Morro da Providência, próximo à Central do Brasil. Ali tinham não só os indígenas que vinham do Nordeste, mas também de outras áreas e lá se constituiu um contingente de indígenas em meados da década de 1950. Nessa região chegavam também os imigrantes da Segunda Guerra Mundial. Era uma área constituída de prostitutas, os judeus que vinham da Europa, população negra, trabalhadores mais pobres como carvoeiros e bananeiros, basicamente se formou um gueto, uma região de populações marginalizadas.
A minha avó conseguiu seu empoderamento com ajuda de uns imigrantes vindos da Segunda Guerra que abriram um depósito de bananas e deram a ela alguns caixotes [para vender], além de um baú para eu dormir – porque tinha muito medo dos ratos e ratazanas que tinham nesse local. Depois de um tempo, minha avó conseguiu uma casa dessas de cômodos, em uma vila, com um banheiro compartilhado com mais de 100 pessoas, todo sujo. Tenho memória de chorar muito porque não queria tomar banho nesse lugar, tinha que usar um tamanco para poder entrar, e como eu chorava muito, minha avó disse que eu não ia mais tomar banho e entrar nesse banheiro, e passei a fazer as necessidades dentro da sala e quarto que era a nossa casa.
Retornando à sua relação com a Paraíba, em meados da década de 1980 você começou a desenvolver o trabalho com a Rede Grumin no empoderamento de mulheres indígenas. Como e quando essa iniciativa surgiu? E como esse trabalho está na ativa atualmente?
Depois que eu terminei a escola Normal, minha avó me incentivou a retornar à Paraíba para resgatar minha própria história. Com 27 anos eu criei o projeto da Casa da Mulher Indígena, para o empoderamento da mulher na comunidade, que durou de 1989 até 2000 através do Grumin/Grupo Mulher - Educação Indígena. Nessa época, eu não pertencia a nenhum movimento social e meu marido que era do Partido Comunista de Carlos Prestes.
A base do Grumin é na Paraíba. Eu não tenho mais trabalhado esse sentido de desenvolvimento comunitário, mas continuo trabalhando no sentido filosófico através dos meus textos. Publiquei livros, cartilhas, cadernos conscientizadores e aí eu não estava mais trabalhando só na Paraíba. Já estava trabalhando com as mulheres Guaranis, da Amazônia, mulheres indígenas do Rio Grande do Sul, em todo país. Hoje a gente tem lideranças potiguaras que foram frutos do trabalho do Grumin.
Você sempre foi uma ativista dos direitos dos povos indígenas. Por conta desse trabalho, inclusive, recebeu uma indicação ao Nobel da Paz, em 2005, através do projeto internacional chamado Mil Mulheres. Essa indicação mudou algo em relação ao seu trabalho? Qual foi a importância desse reconhecimento?
Todas essas indicações foram importantes para mim, porque me fortaleceram. Elas foram abrindo portas para que eu continuasse a minha denúncia, a denúncia da violação dos direitos das mulheres indígenas. Foram portas que estão se abrindo até o presente momento, quando recebi o título de Doutora Honoris Causa pela UFRJ. Tudo isso são portas que se abrem para que a gente continue [trabalhando].
Agora, como já estou uma anciã indígena, não milito mais fisicamente em passeatas e assembleias, então a minha militância é toda através da literatura. Eu escrevo meus livros, meus textos, também dou palestras para as Universidades, em feiras de livros e como veio a Covid-19, passei a trabalhar fazendo lives, há dois anos.
Você também colaborou com a Organização das Nações Unidas na formulação da Declaração dos Direitos Humanos para os Povos Indígenas. Como esse documento foi construído e como essa Declaração contribui com os povos indígenas desde então?
Trabalhei por seis anos seguidos nas conferências. Isso foi de 1989 a 1996. A Declaração foi trabalhada durante três décadas por lideranças indígenas do mundo inteiro nas sessões da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra. Eu, humildemente, levantava meu braço e dava minhas contribuições com o que eu sabia das demandas dos indígenas do Brasil. Eu fui indicada pelo Congresso Nacional dos Índios Norte-Americanos, no início do Governo Collor, para ser um membro participante da Declaração.
Ela é um instrumento internacional jurídico. A gente pode anexar ela, anexamos à Constituição de 1988, por isso os povos indígenas foram contemplados.
Você foi pioneira em diversas frentes a partir do seu trabalho, seja como ativista ou como escritora, por exemplo. É considerada a primeira escritora indígena do Brasil e também foi a primeira indígena a receber o título de Doutora Honoris Causa, pela UFRJ. Que reflexão você faz sobre esse pioneirismo?
A reflexão que eu faço, primeiramente, é de que foi difícil, porque eu sou uma mulher sozinha, indígena, de origem nordestina, eu estive nesse contingente de imigrantes. Sofri muito também por, por exemplo, ter tido a ousadia de criar um núcleo de mulheres indígenas, de criar a cartilha “A Terra é a Mãe do Índio”, por ter feito o I Encontro de Potiguara de Luta e Resistência, em 1989, e a gente fez esse encontro para denunciar o capitalismo que levava aos indígenas à arrendarem suas terras – por conta disso fui ameaçada de morte, colocada em uma lista de pessoas marcadas para morrer e nessa lista estava o Caco Barcellos também, que denunciava a Rota 66 na época.
Mesmo após mais de 40 anos de trabalho, aos 71 anos de idade, você continua na ativa em relação ao ativismo indígena, com as produções acadêmicas e a escrita de livros. Primeiramente, como você desenvolveu esse interesse pela escrita e quais são os planos para esse ano, em relação a isso?
Eu comecei a escrever porque a minha avó pedia para escrever cartas para os parentes na Paraíba. Eu era a única pessoa que tinha sido alfabetizada, então eu passei a ser uma pequena escritora ainda aos sete anos de idade. Comecei a estudar e a prestar atenção no preconceito que minha avó sofria por ser indígena e foi por isso que comecei a escrever essas histórias todas. Meu primeiro livro foi “A Terra é a Mãe do Índio” e foi lançado no I Encontro Potiguara de Luta e Resistência, publicado pelo próprio Grumin, através da Grumin Edições.
Eu sou a primeira escritora indígena e fui apoiada pelo Daniel Munduruku. Tenho sete livros escritos e dois para sair, um de poesia e outro de histórias. O de poesia está sendo pensado para o mês das mães, até o fim de maio, pela Quintal Editora. O outro, até o segundo semestre deve sair pelo Grumin Edições.
Ainda hoje, ou melhor, especialmente nos dias atuais, com o presidente Jair Bolsonaro, os povos indígenas sofrem constantes ataques. Como você avalia a situação dessa população diante desse plano de governo?
Todos esses governos mais atuais tiveram a proposta da emancipação dos povos indígenas à comunhão nacional. O agronegócio é um projeto para destruir e entrar nas áreas indígenas, para acabar com o povo indígena e jogar nas cidades.
Como jogar esse povo nos grandes centros urbanos sem ter políticas públicas específicas para eles nas áreas de saúde, educação, agricultura, desenvolvimento, saneamento básico, entre outros? Não tem uma política pública para esses povos indígenas que são jogados nos centros urbanos e eles saem das comunidades [não por vontade própria, mas] por conta da violência, invasão de terras e estupro às mulheres, por exemplo.
Qual o conselho que você deixa para essa geração atual se tratando de valorização e povos indígenas?
Para os povos indígenas, primeiramente, valorizar os mais velhos. As pessoas mais jovens estão chegando hoje, pensando que sabem tudo, e não reconhecem e nem respeitam as pessoas mais velhas. Esse é meu primeiro conselho: abaixar o ego e respeitar os mais velhos.
Digo também para ler a literatura dos escritores indígenas. É uma literatura baseada na oralidade e na ancestralidade indígena. Vocês tem que ler a gente!
Respeitar as organizações indígenas do passado, porque elas fizeram história, e não jogar para o lado. Para que se chegasse hoje, tem pessoas que morreram no passado, muito sangue foi derramado de 1.500 até hoje e não só da colonização, mas também da neocolonização, ditadura de Vargas, Ditadura Militar, etc. Então, que os indígenas possam estudar, se formar médico, advogado, entre outros, e dar frutos dos seus estudos para a comunidade e preservar a cultura e identidade indígena, porque essa é a maior herança deixada pelos nossos avós e bisavós.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 03 de abril de 2022