por Guilherme Cabral*
Fernando Morais foi enfático: nas suas biografias, ele não retrata “personagens de bronze”, apenas os de “carne e osso”. Assim como foi o caso de seus best-sellers, como Olga, que narra a trajetória trágica de Olga Benário Prestes (1908-1942); Corações Sujos, uma reconstituição da mais sangrenta página da história da imigração japonesa; Os Últimos Soldados da Guerra Fria, que acompanha agentes secretos de Cuba nos EUA; e – uma das suas mais famosas obras, que tem ligação umbilical com a Paraíba – Chatô, o Rei do Brasil, a biografia de Assis Chateaubriand (1892-1968). Todos os citados, inclusive, adaptados para o cinema.
Lançado na segunda quinzena de novembro, Lula – Volume 1: Biografia (Companhia das Letras, 416 páginas, R$ 74,90, versão impressa; e R$ 39,90, o e-book) é o 11° livro do jornalista de Mariana (MG), que chegou batendo recorde em seus quase 50 anos de carreira como escritor: 60 mil exemplares vendidos nas primeiras três semanas.
Nesta entrevista para o Jornal A União, Fernando Morais discorre sobre uma das mais notórias figuras políticas da história brasileira das últimas décadas, cuja gênese veio de quando o jornalista, em seu primeiro mandato como deputado estadual, lutou a favor da causa operária no ABC paulista em plena ditadura militar, nas portas das fábricas.
Dividida em dois volumes, a obra é uma biografia na qual o seu desfecho não poderia ter um contexto dos mais atuais: no ano “incandescente” de 2022, em que estará em jogo o futuro do Brasil.
A entrevista
A biografia de Lula é um livro esperado, pela personalidade política que é. Nesse sentido, qual tem sido a repercussão junto aos leitores?
Tanto da minha parte, quanto da parte dos editores, havia uma expectativa de que o livro viesse a despertar interesse dos leitores por se tratar de um personagem com a história e a estatura do presidente Lula, mas não podíamos imaginar que, em três semanas, pudesse ter vendido 60 mil exemplares. É meu recorde de vendagem em tão pouco tempo. Esse já é o meu 11° livro.
Lula não ficou sabendo antecipadamente sobre o conteúdo do livro?
O Lula não ficou sabendo com antecedência de nada, de nenhuma linha, nenhuma sílaba, nenhuma aspas. Em nenhum momento ele disse: “Olha, eu gostaria de ver tal trecho”, ou poderia até dizer: “Olha, tal tema eu preferiria que não fosse tratado”. Nada, nada, nada, nada. Lula leu a sua biografia junto com os 60 mil leitores, na mesma hora que a obra estava sendo distribuída para todo o Brasil. Foi no dia em que ele embarcou para a turnê europeia.
O biografado chegou a falar o que achou a respeito da obra?
Na verdade, eu não perguntei até hoje o que ele achou do livro. E, com todo respeito a ele, claro, quero dizer o seguinte: eu não escrevi o livro para o Lula. Escrevi para os meus leitores, e ele sabe disso. Mas espero que tenha gostado.
Por que a escolha do Lula para ser biografado?
Acompanho a vida do presidente Lula já há 40 anos. Antes que ele fosse uma personalidade mundial, eu era deputado e, junto com outros deputados, acompanhamos as greves no ABC paulista e, sobretudo, acompanhamos a repressão às greves no ABC. Então, eu brinco dizendo que a nossa estreia no parlamento – porque eram todos deputados de primeiro mandato – foi um dilúvio, pois foram 40 dias e 40 noites nas portas das fábricas do ABC, todo mundo engravatado e de carro oficial, para tentar impedir ou inibir, ou, pelo menos, testemunhar a ação da repressão do Dops e da tropa de choque da polícia militar. Tanto tínhamos razão nos nossos temores que o sindicato foi colocado sob intervenção federal e o Lula passou um mês e tanto preso, período do qual veio a falecer aquela que foi certamente a pessoa mais importante da vida dele, que foi a Dona Lindu, mãe do Lula. Então, eu me aproximei dele nesse período. Nunca chegamos a ser amigos, a frequentar a casa um do outro… nunca tivemos uma relação de intimidade, digamos, mas sempre fomos muito próximos. Com a criação do PT, eu me distanciei um pouco, porque eu era do MDB e tinha uma convicção de que a criação de um partido de esquerda não contribuía para a frente ampla, que estava, de fato, acoando a ditadura militar. A história provou que o Lula estava certo e eu estava errado, porque a criação do PT não atrasou o fim da ditadura, e talvez até tenha precipitado. Só não votei no Lula para presidente da República no primeiro turno da primeira eleição, em 1989, porque eu era do MDB e estava fazendo uma parte do programa de governo do Dr. Ulisses (Guimarães), que votei no primeiro turno, votando no Lula no segundo turno. Depois, votei nele em todas as eleições para presidente. Quando ele se elegeu, eu não sou aquilo que o Itamar Franco chamava de “percevejo de palácio”, mas não houve nenhum distanciamento formal, tanto que nos oito anos em que ele esteve na presidência, estive pelo menos três vezes com ele. Uma vez, por iniciativa da Dona Marisa, fomos exibir o filme Olga, no Dia Internacional da Mulher, para as mulheres que trabalhavam no palácio, desde as mais importantes até as mais humildes. Depois, houve uma passagem curiosa, que eu emprestei a minha casa em 2004, se não me engano, para uma reunião secreta entre o Lula, o Brizola, o Zé Dirceu e o (Carlos) Lupi, atual presidente do PDT. Era uma tentativa de aliança dos dois partidos para uma das eleições daquele ano, eu não me lembro se era para governador ou prefeito de São Paulo. O que eu sei é que não deu certo. E voltei a estar com ele novamente para uma entrevista para a revista Nosso Caminho, do Oscar Niemeyer, ocasião em que ele me deu o furo jornalístico nacional ou até internacional, quando ele me revelou, com o gravador ligado, que a candidata do PT à sucessão dele seria a então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, fato do qual nem mesmo ela sabia. Muito do Lula isso, né?
Quando e como surgiu a ideia do projeto?
A ideia de escrever o livro nasceu 20 anos atrás. Eu queria fazer quando ele se elegeu presidente, em 2002. Sugeri acompanhá-lo durante o mandato e fazer uma espécie de bastidor do governo: o que é governar um país de 200 milhões de habitantes. Ele pulou fora (risos). Quando foi reeleito, em 2006, eu insisti e ele de novo não topou. A possibilidade de entrevistá-lo só ressurgiu por iniciativa dele e da equipe em julho de 2011, quando ele já não era mais presidente da República. Por que eu digo precisamente o mês? Porque tem muita gente, inclusive do PT, que acha que ele só decidiu autorizar um livro sobre ele quando teve um câncer na laringe, que, portanto, teria uma clareza a respeito da mortalidade de todo ser humano. Não é verdade: quando fui procurado foi em julho, e o tumor só foi diagnosticado em outubro. Isso interrompeu nosso trabalho, já estava gravando com ele, e só retomamos quando ele teve alta, em meados de 2012, quando fez sua primeira aparição pública pós-câncer, que foi um megacomício em Fortaleza, no Ceará. Trabalhamos até meses atrás. Era para ser publicado tudo em um livro só. Ocorre que veio a crise, o golpe de Estado contra a Dilma, e eu tive o privilégio de acompanhar todos esses acontecimentos ao lado dele, do ponto de vista dele, ouvindo o que ele dizia. Aí, propus ao editor e ao Lula que o livro fosse dividido em dois tomos.
O senhor diz, na obra, que esse livro não é “chapa branca”. Então, foi produzido de forma isenta?
Não é um livro “chapa branca”, é um livro de informação. Tanto que tem gente adorando o livro e tem gente dando porrada nele. Mas faz parte. Quando publiquei o Chatô foi a mesma coisa: tinha gente que eu tinha pintado um gângster, um monstro, e tinha gente que dizia que eu tinha pintado o maior mecenas da história da aviação e das artes no Brasil. Sinal de que retratei Chateaubriand com fidelidade. Com o Lula foi a mesma coisa, eu escrevi tudo que vi ou apurei. Bom, a maior prova de que não é um livro “chapa branca” é que o Lula só leu quando estava impresso. Antes, ele não leu o livro e não pediu para que desse a alguém para ler.
Há informações inéditas no volume?
Descobri coisas que a imprensa cotidiana não tinha descoberto. Descobri que a Polícia Federal havia colocado escuta na casa do Lula secretamente, sem autorização judicial, no dia do depoimento coercitivo. Descobri que a PF tinha infiltração com microcâmeras dentro do sindicato e no pavimento que estava reservado só para o Lula e sua família e seu estado maior.
A biografia já começa com fatos mais recentes, a exemplo da prisão de Lula e dos julgamentos do STF. Como analisa o papel da imprensa na cobertura dos fatos relacionados a Lula e a Lava Jato?
No caso do Lula, o que eu pretendi: pegar o mesmo personagem sendo submetido a duas prisões em dois “Brasis” diferentes, hoje e há mais de 40 anos, em 1980. Deliberadamente, o que causa um certo espanto, principalmente no leitor mais jovem, que, na verdade, ele está sendo preso em uma suposta democracia que vemos hoje no Brasil, e, ao mesmo tempo, eu “pulo” – faço um flashback, como dizem os cineastas – para ele sendo preso durante uma ditadura militar. Então, é uma forma de construção que vai se repetir no volume dois. O ano de 2022 vai ser um ano “incandescente” para o Brasil, que certamente fará parte do próximo volume. A grande imprensa, salvo poucas e raras exceções, foi o ingrediente da maior importância para a derrubada da Dilma, em primeiro lugar, para a vitória do genocida [Jair Bolsonaro] e para a prisão do Lula, sem nenhuma dúvida. Aliás, é uma recomendação que costumo brincar, dizendo o seguinte: o leitor deveria ler esse primeiro volume de trás para frente. Para um apêndice, contratamos uma instituição acadêmica do Rio de Janeiro que se dedica exclusivamente à medição da cobertura da grande imprensa. Pegaram os três maiores jornais do Brasil – a Folha, o Estado e o Globo –, a revista mais importante na época (que hoje não vale um figo podre), que era a Veja, que vendia mais de um milhão de exemplares, e o telejornal que chegava a falar com 100 milhões de pessoas que era o Jornal Nacional. Essas pessoas fizeram um levantamento, dia por dia, página por página, segundo por segundo, para observar o tratamento que deram, de um lado o Lula, do outro, o Moro e a Lava Jato. É escandaloso. O próprio Lula faz, em um determinado momento do livro, um caminho do nascimento e transformação de uma fake news em uma manchete do Jornal Nacional e depois em uma capa da Veja.
O senhor é um autor que tem um lado politizado. Qual a condição do Brasil para o futuro?
Olha, algumas pessoas dizem que eu virei o velho do semiárido ou o bolchevique carbonário. Não. Sou uma pessoa esperançosa, e não é uma ingenuidade, não. De alguma maneira, faço política pessoalmente e cobri política. Então, essas condições me permitem olhar para o horizonte com esperança. Não sou do PT, mas o primeiro passo é eleger o Lula para presidente da República em 2022. Aliás, fiz uma aposta com o meu barbeiro: se ele ganhar no primeiro turno, vou passar um ano cortando barba e cabelo de graça.
*Entrevista publicada originalmente na edição impressa de 19 de dezembro de 2021