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Com 60 anos de carreira, ator que recebe homenagem do Fest Aruanda hoje fala com exclusividade sobre a sua vida e obra

Othon Bastos: “Eu não me importo com a posteridade”

publicado: 15/12/2021 08h45, última modificação: 15/12/2021 08h45
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tags: Othon Bastos , 60 anos de carreira , fest aruanda , Deus e o Diabo na Terra do Sol , Corisco

por Joel Cavalcanti*

Quando o personagem Corisco, de Deus e o Diabo na Terra do Sol, rodopia e cai morto gritando “mais forte são os poderes do povo”, o ator Othon Bastos dá vida a uma das cenas mais icônicas do cinema nacional. O ano era 1964 e desde então o baiano de Tucano acumula em seu currículo cerca de 80 filmes e mais de 300 personagens em seus 60 anos de carreira. É por todo esse repertório que está intimamente ligado à história do cinema que o artista recebe hoje o Troféu Aruanda em sua homenagem, às 19h30, no Cinépolis (Manaíra Shopping), na capital.

“Eu não me importo com a posteridade. Nunca me preocupei em deixar algo para a posteridade. O que faço é porque eu quero fazer. Sei escolher o que quero fazer, vivi sempre na escolha do que quero fazer. Sucesso é fútil”, revela o veterano ator de 88 anos, e que ainda está em plena atividade, sobre esse momento da carreira em que tem acumulado reverências ao patrimônio que criou como ator. Além do tributo entregue a Othon, o festival paraibano exibe hoje, às 14h, o longa O Paciente – O Caso Tancredo Neves (2018), de Sérgio Rezende, protagonizado por ele. Antes, às 11h, haverá uma mesa virtual de homenagem no YouTube do festival, na qual Othon revisitará alguns de seus personagens, com a presença do diretor Júlio Bressane e do ator Zé Carlos Machado.

“Como Picasso disse, a inspiração existe, mas ela precisa pegar você trabalhando”, diz Othon Bastos, para quem trabalhar é ainda um prazer e uma obrigação. É também uma luta para que se criem personagens para atores idosos, algo sempre tão escasso. “As pessoas não estão escrevendo mais para idosos, mas se você pegar a literatura você vai ter milhões de livros com protagonistas idosos. Hoje em dia é belo, é corpo, é físico... Eu também já tive essa fase, por incrível que pareça”, brinca o artista. A dois anos de completar 90 anos, o ator referência de uma geração, usa sua voz para defender seu espaço nas telas e nos palcos. “Se for viver de aposentadoria, você morre. Enquanto você tiver vida, tiver resistência, cabeça e emoção, tem que estar trabalhando. O teatro me ensinou isso”.

Os mais recentes trabalhos de Bastos foram a novela Éramos Seis, da Rede Globo, a peça A chegada de Lampião no inferno, com direção de Miguel Vellinho, e o filme sobre a vida de Tancredo Neves, pelo qual recebeu a indicação de Melhor Ator pelo Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. É desta maneira, sempre atuante em sua profissão, que ele consegue achar o sentido para a sua trajetória. “Aquele que não respeita a sua velhice não é digno dela. Quem não tem respeito por sua vida já pode ser considerado morto. O sentido de viver é caminhar sempre. Não importa a chegada, o que importa é você caminhar”, afirma o artista, que estreou no teatro em 1950 com Otelo, de Shakespeare, e que deve lançar no próximo ano a produção da Netflix Depois do Universo, que tem direção e roteiro assinado por Diego Freitas.

O ator baiano também atuou em grandes filmes que estão para sempre marcados no cinema como O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, São Bernardo (1972), de Leon Hirszman, O Homem do Pau-Brasil (1981), de Joaquim Pedro de Andrade, O que é isso, companheiro? (1997), de Bruno Barreto, Central do Brasil (1998), de Walter Salles, e Bicho de Sete Cabeças (2000), de Laís Bodanzky. “Todo ator deveria dirigir – eu, por exemplo, não tenho paciência. Porque o ator é muito egoísta: ele pensa nele”, define.

Em cada um desses trabalhos, Othon absorveu algo especial dos cineastas com quem pode trabalhar e travar um método de construção de personagem que depende da relação com esses profissionais. “Cada diretor é uma aprendizagem que você tem. Trabalhei com quase todos os diretores do Cinema Novo. Cada diretor tem seu estilo e objetivo na vida. O que importa entre o diretor e o ator é a convivência. Você tem que se tornar amigo do diretor para ter uma intimidade de conversa com ele. O diretor não tem que se impor”, considera ele, que teve na relação de amizade criada com Glauber Rocha a abertura necessária para mudar o roteiro de Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Foi durante uma conversa de 12 horas com o diretor baiano, durante uma viagem de jipe entre Salvador para Monte Santo, onde se realizariam as filmagens do longa, que Othon convenceu Glauber a transformar o seu Corisco em um personagem adaptado ao trabalho do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. “O Corisco era um personagem comum, como seria Lampião e Zé do Norte ou qualquer outro cangaceiro. Foi a primeira vez que apareceu um cangaceiro brechtiano, que conta a história, que narra, que conta o objetivo dele”, lembra Othon, apontando para o cartaz do Fest Aruanda, que conta com a icônica imagem de seu personagem com um punhal rente ao rosto. “Aquele é o momento de reflexão do Corisco. É quando ele está fazendo uma oração para fechar o corpo contra o Antônio das Mortes”, relembra ele, que riu quando foi lembrado que a ditadura militar o considerou como um influenciador do Glauber Rocha. “Isso é um tremendo absurdo. Glauber é um ser político. Ele é um gênio”.

O tom que Othon Bastos dá a sua atuação, marcada pelo comedimento e pela simplicidade, é o que o segue desde sempre e que ele imprime em suas mais versáteis composições. “Essa é minha linha de trabalho. Não destruí o Stanislavski, eu cheguei ao Brecht por causa do Stanislavski. Os dois, no fundo, se entendem. Quando é algo que precisa ser realmente vital, que precisa ser buscado um relacionamento com o passado, você vai no Stanislavski. O Brecht lhe dá o raciocínio, a razão. Quando eu trabalho, busco nos meus personagens onde eu posso utilizar o meu método de trabalho e minha maneira de interpretar”, compara o ator, que costuma repassar esses conhecimentos para quem está iniciando nas artes cênicas.

Othon Bastos aproveitou para reafirmar seus laços com a região, onde nasceu e de onde tão cedo partiu. “Meu vínculo é com o Nordeste. Sou baiano do Alto Sertão e trago nas veias o nordestino. Eu nunca perdi isso. Para você crescer como uma árvore que quer chegar aos céus, as suas raízes têm que estar perto do inferno. Isso eu não perdi e não quero perder nunca”, finaliza.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 15 de dezembro de 2021