Um laboratório de pesquisa conjunto entre Brasil e China pretende resolver grandes entraves da agricultura familiar no Semiárido nordestino. O futuro Laboratório Brasil-China de Mecanização e Inteligência Artificial na Agricultura Familiar vai desenvolver e adaptar máquinas de pequeno porte e tecnologias digitais para os pequenos produtores da região.
A iniciativa surge para enfrentar um dado crucial: embora o Semiárido abrigue cerca de 50% da agricultura familiar do Brasil, com cerca de dois milhões de estabelecimentos, apenas de 3% a 5% dessa produção é mecanizada, segundo o diretor do Instituto Nacional do Semiárido (Insa), o biólogo Etham Barbosa. “Nós temos um potencial enorme de aumentar a produtividade, sem, no entanto, degradar mais a Caatinga”, afirma Barbosa. O que o projeto pretende é aposentar a enxada do agricultor, racionalizando o tempo e reduzindo o esforço físico.
O projeto é resultado de um dos 34 acordos bilaterais assinados pelos governos do Brasil e da China. O Insa, unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), atua como ponto focal do acordo no Brasil. A parceria foi consolidada com um memorando entre o Insa e a Universidade Agrícola da China (CAU), incluindo visitas de comitivas e o simbólico lançamento da pedra fundamental em Campina Grande, no dia 18 deste mês.
A fase atual é de estruturação. Uma portaria do MCTI formalizará uma comissão com diversos entes, incluindo universidades e a Associação Brasileira da Indústria de Máquinas (Abimaq), para definir os marcos conceitual, regulatório e financeiro do projeto. O recurso para tirar o laboratório do papel deve vir, prioritariamente, do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). O montante necessário para o início dos trabalhos está estimado em cerca de R$ 60 milhões, cobrindo infraestrutura, logística e pesquisa. A expectativa é que a comissão esteja formalizada até o fim de dezembro, com o projeto finalizado em mais dois ou três meses.
No Rio Grande do Norte
Enquanto o laboratório é planejado, um projeto-piloto já está em andamento em Apodi (RN), testando máquinas chinesas adaptadas. “Campos que levavam um mês, dois, para serem preparados para plantio, no cabo da enxada, na junta de boi, com alguns desses maquinários, leva de quatro a cinco dias”, relata o diretor do Insa. Entre os equipamentos em teste, está uma colheitadeira de arroz de pequeno porte.
O foco do laboratório será a pesquisa aplicada. O objetivo não é apenas testar, mas validar, certificar e desenvolver máquinas inteligentes adequadas ao solo, clima e relevo do Semiárido. A atuação vai se concretizar em várias frentes, como o desenvolvimento de equipamentos para grãos, oleaginosas, frutas e palma forrageira, além de tecnologias de processamento de produtos agrícolas.
A inteligência artificial (IA) será um outro pilar do projeto. “A inteligência artificial vem para a gente acompanhar um processo de monitoramento ambiental, de solos, de água atmosférica, das próprias máquinas”, detalha Barbosa. A ideia é construir sistemas de big data para a produção agrícola familiar, gerando informações estratégicas sobre o território.
A transferência de tecnologia entre os países vai além da venda de máquinas. “A gente tem que desenvolver a indústria nacional”, ressalta o diretor. O projeto prevê um fluxo de pesquisadores e pós-graduandos entre os países, com disciplinas especializadas em engenharia agrícola. “É possível que a China queira abrir fábricas aqui, e será muito bem-vindo, porque é a empregabilidade que a gente vai dar aos nordestinos”, acrescenta Barbosa.
Equipamentos acessíveis e de fácil manejo
A pergunta sobre como as máquinas chegarão ao agricultor ainda não tem uma resposta definitiva. O laboratório em si é um gerador de conhecimento e tecnologia. Caberá ao Poder Público, posteriormente, definir as políticas de acesso. “Se vai ser maquinário subsidiado, se vai ser através de financiamento a fundo perdido”, pondera Barbosa, citando a possível futura atuação de bancos públicos como o BNDES e o Banco do Nordeste.
Os dados gerados pela IA, considerados estratégicos para a soberania nacional, também terão uma central de monitoramento. A discussão com a Abimaq inclui a criação de normas para padronização e segurança dessas informações. O projeto tem foco exclusivo na agricultura familiar, setor vital para a segurança alimentar da região. “A agricultura familiar não produz commodities, a agricultura familiar produz comida da mesa”, define Barbosa.
O desenho do projeto também considera a necessidade de treinar os agricultores para usar essa nova tecnologia, criando equipamentos acessíveis e de fácil manejo. “Vão ser maquinários inteligentes, simples. Não é nada extremamente tecnológico, mas eles vão ser adaptados não só para o ambiente, mas para as pessoas, e com um olhar especial para as mulheres, que são o grande foco hoje da agricultura no Semiárido”.
“Tudo que você praticamente comeu hoje, ou está na feira de Campina Grande, ou nas feiras nossas, por volta de 70%, pode ter certeza, veio da agricultura familiar”, complementa. A promessa é que a tecnologia opere em diálogo com o conhecimento tradicional do povo do Semiárido, que há séculos desenvolveu uma forma eficiente de convivência com a terra. “O fim, na verdade, é que a gente traga também esse maquinário para uma justiça social, para um mecanismo em que a gente traga riqueza compartilhada, não concentrada”, conclui o diretor do Insa.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 30 de novembro de 2025.