Engolidos pela rotina corrida, mas com estrutura e conforto, dificilmente conseguimos voltar nossos olhares para uma situação cruel que grita — embora invisibilizada — nas ruas da cidade: centenas de vidas que cabem em pedaços de papelão. São homens, mulheres, crianças e idosos que transformaram a rua em morada. No Brasil, 345.542 pessoas estão em situação de rua, segundo relatório do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) realizado com base nos dados disponibilizados pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) sobre o CadÚnico.
O número cresceu 5,37% em relação ao ano passado e revela uma dura realidade: a ausência de políticas de moradia, trabalho e educação, somada ao aumento da violência contra essa população.
Na Paraíba, são 1.500 pessoas vivendo nas ruas, sendo 788 apenas em João Pessoa. A maioria é composta por homens entre 18 e 59 anos, mas também há crianças, adolescentes e idosos que carregam consigo histórias interrompidas.
Para enfrentar esse desafio, o Governo do Estado reativou, em outubro de 2024, o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Estadual para Inclusão Social da População em Situação de Rua (CIAMP-Rua-PB). Criado pelo Decreto no 38.895/2018, o comitê reúne representantes de secretarias estaduais, órgãos de Justiça, instituições de ensino, entidades religiosas, movimentos sociais e usuários da rede de atenção. “A rua não é escolha, é resultado da ausência de políticas eficazes. Nosso papel é articular esforços para transformar essa realidade e garantir dignidade a quem mais precisa”, afirma Albeno Mendonça Silva, gerente-executivo da Proteção Social Especial da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Humano e coordenador do CIAMP-Rua-PB.
Desde sua retomada, o CIAMP-Rua-PB tem realizado reuniões periódicas e conquistado avanços significativos. Entre eles, a criação de um grupo de trabalho para elaboração do Plano Estadual para Pessoas em Situação de Rua, que será a principal ferramenta de orientação das políticas públicas voltadas a esse público em todo o território paraibano. Outra iniciativa foi o lançamento da identidade visual do CIAMP-Rua-PB, que fortalece a legitimidade institucional e amplia a comunicação direta com a sociedade. “O desafio é grande, mas estamos dando passos importantes. Só com integração e corresponsabilidade é possível construir políticas públicas de fato transformadoras”, completa Albeno.
O Comitê também foi responsável pela organização do 1o Seminário Estadual para Pessoas em Situação de Rua, realizado na última terça-feira (27), em parceria com a Secretaria de Desenvolvimento Humano (Sedh). O evento reuniu profissionais da Saúde, representantes do CIAMP Nacional, do Movimento Nacional de Meninas de Rua, do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), do Ministério Público e da Defensoria Pública. Considerado um marco para a política pública no estado, o seminário deu visibilidade à pauta, promoveu a formação de profissionais da rede socioassistencial e fortaleceu compromissos intersetoriais na defesa de direitos.
O comitê é composto por representantes de órgãos governamentais — como a Sedh, Companhia Estadual de Habitação Popular (Cehap), Secretaria de Estado da Saúde, Educação, Segurança, Planejamento, Turismo, Esporte, Mulher e Diversidade Humana — além da Defensoria Pública, Ministério Público, universidades, entidades religiosas de diferentes matrizes, conselhos de classe, movimentos sociais, usuários da rede de atenção e organizações da sociedade civil. Essa diversidade de vozes reforça o caráter democrático e plural da política. “O comitê fomenta o debate para fazer as correções necessárias e assegurar que essa população possa viver com dignidade, tendo seus direitos garantidos”, resume a secretária de Estado do Desenvolvimento Humano, Pollyanna Werton.
“Direito de ser visto, ouvido e protegido”
“A rua não é lugar de viver, mas quem está nela tem o direito de ser visto, ouvido e protegido.” A frase é de Lucas Nascimento, 39 anos, ex-professor de capoeira e ex-trabalhador da indústria de celulose. Há oito meses, ele recebe atendimento no Centro Pop de João Pessoa, um dos serviços que dialogam diretamente com o CIAMP-Rua-PB.
Filho de trabalhadores rurais baianos, Lucas lembra com orgulho da dignidade ensinada em casa: “Minha mãe trabalhou 30 anos numa usina de cana, meu pai foi lavrador. Eles me ensinaram respeito. A rua não apagou quem eu sou, mas mostrou que precisamos de soluções coletivas”.
Antes de chegar à situação de rua, Lucas construiu uma trajetória marcada pela arte e pelo trabalho. “Sou professor de capoeira, já dei aula de dança, desenvolvi projetos sociais e trabalhei na Fibra, do grupo de celulose. Mas a vida tem fases, e em algumas delas a gente se vê sem ter a quem recorrer”, conta. Apesar de ter família na Bahia — pais a quem ama e respeita profundamente —, o caminho o levou à Paraíba, onde enfrenta os desafios da sobrevivência diária. O Centro Pop, espaço de acolhimento onde Lucas hoje encontra apoio, é considerado referência no atendimento à população em situação de rua. Funciona de segunda a sexta-feira e realiza cerca de 120 atendimentos diários, sejam homens, mulheres, pessoas trans, lésbica, gays, travestis. No local, os usuários têm acesso a banho, café da manhã, almoço, lanche, espaço para descanso, lavagem de roupas e apoio técnico para documentos e reinserção social.
“Passamos por um processo de revitalização metodológica. O Centro Pop não é apenas espaço de higienização e alimentação, mas de cidadania. Aqui, as pessoas têm voz, vez e podem reivindicar seus direitos”, explica Katiana dos Santos, que coordenou o equipamento até o início de agosto e hoje atua na Vigilância Socioassistencial do município.
O espaço também se tornou um ambiente de escuta e participação. “Se todo mundo não der as mãos, a gente não vai a lugar nenhum”, resume Lucas, traduzindo o espírito coletivo que orienta a luta por dignidade.
Papel fundamental de dois equipamentos
A atuação do CIAMP-Rua-PB não se limita ao Centro Pop. O comitê dialoga, ainda, com outros dois equipamentos fundamentais: o Consultório na Rua e os Restaurantes Populares, que ampliam o cuidado integral com essa população. A lógica é clara: nenhuma política sozinha resolve o problema. É a articulação intersetorial — entre saúde, assistência social, segurança alimentar, habitação e cidadania — que dá corpo a uma rede de proteção capaz de transformar vidas.
Criado em João Pessoa em 2011, o Consultório na Rua possui, atualmente, seis equipes multiprofissionais, que realizam, em média, 1.200 atendimentos por mês diretamente nos locais onde as pessoas vivem. Médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais oferecem desde cuidados básicos até encaminhamentos especializados.
“Não é só atendimento clínico, é também vínculo e humanidade. Levamos saúde para quem está invisível nos cantos da cidade”, afirma Luana Alves, coordenadora do serviço.
Já os Restaurantes Populares garantem segurança alimentar, oferecendo refeições balanceadas a preços simbólicos ou gratuitamente para quem não tem condições de pagar. A alimentação regular é, muitas vezes, a porta de entrada para outros serviços.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 31 de agosto de 2025.