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Quem foi?

Linduarte Noronha

publicado: 29/04/2024 10h28, última modificação: 29/04/2024 10h28
Quando não podia fazer cinema, jornalista se “vingava” na reportagem

por Marcos Carvalho*

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“Paraibano que nasceu em Pernambuco”, Linduarte Noronha exerceu uma singular militância humanista ao longo da sua vida, com foco na sua paixão pela palavra, pela fotografia, pelo rádio e pelo cinema | Ilustração: Tônio

Se as fronteiras entre o documentário são tênues, elas estão ainda mais borradas na vida de Linduarte Noronha. Seu filme mais importante, Aruanda, classificado com manifesto, marco e obra fundadora do Cinema Novo, nasce de uma reportagem. É por isso que, antes de se identificar como cineasta, crítico e professor de cinema, ele fazia questão de destacar seu trabalho como jornalista.

Foi um paraibano que nasceu em Pernambuco. A contradição dessa afirmativa se justifica pelo fato de ter sido nestas terras que Linduarte construiu sua história. Ainda com três anos de idade deixou a cidade de Ferreiros (PE), onde nasceu em 24 de agosto de 1930, para morar em João Pessoa (PB) até o fim da vida. Foi na Paraíba que teve seu primeiro contato com a Comunicação, quando ainda era estudante do Lyceu Paraibano, em 1947. Depois de um teste de locução, foi admitido na Rádio Tabajara, onde apresentou programas como Os Mestres do Conto, Concerto Noturno, Ondas Literárias, vindo a assumir, em 1952, a direção das produções de radioteatro. Paralelamente, estudava na Faculdade de Direito da Paraíba, obtendo o diploma de bacharel em 1958.

Do rádio para o jornal foi um pulo. Linduarte Noronha se encontrou na produção de reportagens, especialmente de fotorreportagens, atividade que ele mesmo atribuiu como a base para seu trabalho como cineasta. “A minha atuação antes do cinema era jornalística. Texto e foto. Passei muitos anos trabalhando nisso”, revelou em uma entrevista concedida à jornalista Ana Carvalho para a revista Devires.

Já no início da carreira, em 1955, venceu o 1º Prêmio Internacional de Fotorreportagem no Festival Mundial de Praga com o trabalho “Os Donos da Lama”, publicado em A União. Para produzi-lo, Linduarte conviveu durante 15 dias com as populações das margens do Rio Paraíba, retratando “a vida do homem da lama, do pescador de caranguejo, elemento típico da paisagem humana das populações ribeirinhas”, como destacava a nota publicada pelo veículo por ocasião da premiação.

É dessa época também um retrato do profissional, traçado pelo Jornal O Norte: “Linduarte Noronha estuda Direito e ensina Geografia em dois colégios da capital, além de exercer outras atividades onde não está incluída a cinematográfica, que ele põe em lugar reservado. De estatura mediana, forte e expansivo, gosta, acima de tudo, de cachimbo, razão por que aceitou a presidência do Mboi Tatá Pipe Club, que congrega o pessoal da imprensa provinciana que cultiva o uso do cachimbo”.

Apesar de vencer o concurso internacional, Linduarte não chegou a receber o prêmio – uma viagem à Tchecoslováquia e uma máquina de escrever – porque foi proibido pelo Itamaraty, que alegou se tratar de um país socialista. O episódio não desanimou o jornalista, que continuou produzindo tanto para A União, como para revistas nacionais, onde se tornou correspondente: “Feira de Pássaros”, reportagem que denunciava o engaiolamento dos animais, publicada na revista Cigarra, e “No Itinerário do Menino de Engenho”, para a revista Manchete, são algumas dessas produções. Nesta última, passou uma semana na cidade de Pilar (PB) conversando e fotografando alguns tipos “criados” por José Lins do Rego. “Tinha muita gente viva ainda, alguns personagens, aquelas pretas de engenho, muito velhinhas”, contou o jornalista.

Apesar do reconhecimento nacional, “a velha e querida A União, como costumava se referir, nunca foi esquecida. E foi no centenário jornal onde publicou as reportagens que deram origem, depois, a sua emblemática obra, Aruanda. A primeira delas, “Reflexos de uma catequese: ritual africano em domínio branco”, retratou a origem do festejo dedicado a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no qual remanescentes quilombolas reproduziam sua ancestralidade africana.

A segunda reportagem, “As oleiras de Olho D’água da Serra do Talhado”, publicada em duas partes, em agosto de 1956, nasceu de um convite recebido naquela primeira visita para conhecer o modo de vida da comunidade. “Olhei para a serra e isso me ficou na cabeça. (...) Foi quando, meses depois, eu disse a um colega, Dulcídio Moreira: ‘Vamos para lá, para a Serra do Talhado, fazer uma reportagem?’. Fomos para Santa Luzia e lá fizemos amizade com um tenente reformado, Tenente Vieira, que foi o guia nosso na serra. Ficamos lá o dia todo, fotografei muito, inclusive os que futuramente foram integrantes do filme. Fiz amizade com João Carneiro, que era uma espécie de chefe, e Manuel Pombal, tocador de pífano”, descreve o jornalista.

Linduarte Noronha não media esforços (no sentido literal da palavra) para conseguir levar adiante as ideias de suas reportagens. No caso da reportagem sobre os manguezais, vencedora do prêmio internacional, ele percorreu 12 quilômetros até a foz do rio, comendo farinha e tomando cachaça para anestesiar o corpo e tentar esquecer as picadas dos maruins. Já na reportagem sobre a Serra do Talhado, foram 24 quilômetros percorridos entre a última fazenda, ao sopé da serra, até o local onde habitava a comunidade quilombola. “Durante mais de duas horas, caminhamos na lomba de animais sob sol abrasador, cercados de vegetação xerófila, típica, e quebradas de serras que se sucedem numa monotonia sem fim e cansativa”, escreveu Noronha. Ele procurava fazer uma verdadeira imersão na realidade que pretendia reportar, lançando mão de um jornalismo baseado no método etnográfico, que, inclusive, incorporava o próprio processo de apuração à reportagem.

Mas a fotografia era uma forma de Linduarte se aproximar da Sétima Arte, pela qual sempre teve fascínio. Cecília Noronha, jornalista e sobrinha do cineasta, relatou que encontrou um dos trabalhos colegiais do tio no qual ele já usava a fotografia para fazer o relatório de uma viagem escolar. “Ele colocou as fotos que tirou e escreveu embaixo delas. Então essa questão do texto e imagem já vem desde a adolescência. A geração dele, na verdade, se encantou pelo cinema. E como não podia fazer cinema ainda, fazia fotografia. Ele falava, inclusive, das caixinhas de papelão que fazia para projetar os filmes”, explica Cecília, que também vem pesquisando as relações dialógicas em Aruanda.

A pesquisadora avalia que a obra de Linduarte, seja como jornalista ou cineasta, possui um forte traço regionalista, procurando fortalecer a noção do homem do Nordeste no seu habitat. Cecília acredita que essa característica é fruto da educação que seu tio, como os de sua geração, tiveram: “Essa relação com o espaço, da geografia humana, está presente em todo o trabalho dele. Ele estabelece um diálogo com figuras da época como Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, José Lins do Rego e até ressignificando outras figuras, como Nina Rodrigues. Todo o percurso profissional dele tem um relacionamento com o homem e o microcosmo geográfico”.

A repercussão de Aruanda creditou Linduarte para assumir, em 1963, a dianteira de um setor de cinema que estava sendo implantado na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Com o golpe civil-militar de 1964, o então reitor Mário Moacyr Porto foi exonerado, e Linduarte acusado de comunismo pela compra de uma câmera de fabricação russa, que havia sido adquirida – tudo legalmente – em uma feira de equipamentos audiovisuais, no Rio de Janeiro. O fato foi registrado no documentário Kohbac, a maldição da câmara vermelha (2009), de Lúcio Vilar. O historiador Claudio Lopes explica que desse fato se espalharam boatos (as fake news não são de hoje) de que Linduarte seria amigo pessoal do primeiro secretário do partido comunista da finada União Soviética e costumava fumar charuto com Fidel Castro, em Cuba.

Publicada em duas partes, em 1956, matéria das oleiras da Serra do Talhado foi a gênese de ‘Aruanda’ | Fotos: Arquivo A União

“Demitido, ficou no período de 1964-1979, na chamada Rua da Amargura – ‘Eu não podia nem vender amendoim na cidade’. Entre outras agruras, foi impedido de se submeter a concurso de direito e, convidado pela Universidade Federal de Brasília para ser professor titular (1968), não pôde assumir o cargo em decorrência de ‘documento’ oriundo da UFPB”, afirma Lopes. Nas entrevistas concedidas, Linduarte fazia questão de ressaltar que a perseguição e a censura vinham tanto de militares quanto de civis, que formavam verdadeiras CPIs do cinema para impedi-los de trabalharem.

Linduarte seguiu escrevendo a coluna de crítica cinematográfica em A União. “Escrevi diariamente sobre cinema durante 15 ou 20 anos, eu acho. Mas, como não podia fazer cinema, eu me vingava, entre aspas, na reportagem”, revelou Linduarte, não sem expressar seu descontentamento pelo processo interrompido. “Destruíram o núcleo cinematográfico de uma universidade, e isso não é brincadeira. Foi a morte de um nascimento. A gente podia ter criado um centro importante de documentário; hoje já tem uma turma boa, mas era para ter começado há 40 anos atrás”, desabafou.

Lúcio Vilar, professor da UFPB e fundador do Fest Aruanda, destaca que Linduarte, ao lado de outros importantes nomes, contribuiu para consolidar e profissionalizar a condição de crítico de cinema nos jornais paraibanos da época. “Sua escrita era cirurgicamente ácida. Ele alternava o caráter, muitas vezes corrosivo, com uma monumental ironia fina quando não simpatizava com uma obra, seja pela fragilidade de seu argumento, roteiro, desempenho de atores ou a direção do filme. Não poupava nem mesmo figuras já coroadas no panteão dos grandes diretores nacionais ou de renome mundial. Era livre e desimpedido para acertar ou errar nas análises e prognósticos; não tinha, portanto, camisa de força, de caráter estético ou ideológico, e sempre fez questão de dizer que nunca sofreu qualquer tipo de censura no Jornal A União”, frisou Vilar.

Apesar desse vasto legado, essa face do crítico de cinema – assim como de repórter – são pouco conhecidas do público, especialmente das novas gerações. “Ele tornou-se o ‘senhor Aruanda’ após o filme, em 1960, e sua trajetória como crítico caiu numa espécie de limbo temporal, que em breve deverá ganhar luz outra vez, pela relevância de sua produção que se confunde ou se mescla com o gênero da crônica, daí sua riqueza e potência a ser revisitada”, comenta Vilar. Outra faceta pouco explorada de Linduarte são sua produção de contos, que apesar de tímida, circularam no suplemento Correio das Artes e em O Norte.

Somente em 1979, com a criação do Núcleo de Documentação Cinematográfica (Nudoc), é que Linduarte retornou à UFPB. O órgão, que surgiu em cooperação com a Associação Varan-Paris, formada por realizadores e outros profissionais do cinema, buscou estimular a cultura cinematográfica no estado através da capacitação de quadros técnicos. Linduarte se integrou ao então Departamento de Artes e Comunicação (DAC), e passou a lecionar, dentre outras disciplinas, a de Jornalismo Cinematográfico no recém-criado curso de Jornalismo (1977), unindo duas de suas grandes paixões. Na retomada às atividades profissionais, Noronha acumulou nova passagem pela Rádio Tabajara, onde chegou a ser diretor, foi procurador do estado e diretor do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (Iphaep) por 16 anos.

Já aposentado, dedicou-se a prazeres simples da vida, como aproveitar os fins de semana na praia com a família, a leitura e a escrita (muita escrita) nas antigas máquinas de escrever. “Até quando foi possível, ele sintonizava seu radinho de ondas curtas na BBC de Londres. Ele adorava ouvir as badaladas do relógio que são marca dessa estação estrangeira”, narrou Cecília.

Linduarte Noronha faleceu em 30 de janeiro de 2012, em decorrência de dificuldades respiratórias provocadas por uma pneumonia. Para além das contribuições estéticas ao cinema que se tornaram mais conhecidas em Aruanda e na direção do primeiro longa paraibano, O Salário da Morte (1971), seu legado foi também, como escreveu Lúcio Vilar por ocasião de sua morte, de “um humanista que usou a palavra, a fotografia, o rádio e o cinema para exercer uma singular militância que nenhum vínculo mantinha com partidos ou ideologias”.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 28 de abril de 2024 .