Ao longo de toda manhã de sábado, no trecho de mar em frente à Fundação Casa de José Américo (FCJA), no Cabo Branco, um grupo distinto de pessoas reúne-se para promover a inclusão e fomentar o acesso ao lazer, esporte, arte e cultura na capital paraibana. São os integrantes do projeto Acesso Cidadão, que junta voluntários e pessoas com deficiência (PcD), para proporcionar banhos de mar e partidas de vôlei a um público que, de outra forma, não teria acesso ao espaço da praia, que deveria ser comunitário. Hoje, uma média de 50 a 60 pessoas participam semanalmente das atividades desenvolvidas pelo projeto que, esporadicamente, também recebe as PcD de outras cidades e estados.
Propostas em 2011, as primeiras ideias para o projeto foram concebidas por Gláucia Karina Barros, analista de sistemas e mãe atípica — termo utilizado para se referir a uma mulher que cria um filho com neurodivergência ou deficiência. Ao ser compartilhada, a ideia dela foi abraçada por outras pessoas, que se mobilizaram para fazer acontecer: entre elas, Genilson Machado — na época, membro da Fundação Centro Integrado de Apoio à Pessoa com Deficiência (Funad), atual presidente da ONG AC Social — e Janete Rodriguez —gerente-executiva do museu da FCJA.
“É difícil se locomover, por exemplo, enquanto cadeirante, em uma cidade que não está adaptada para receber pessoas como você. Naquela época [2011], não havia calçada com piso tátil, nem formas de acesso às principais instituições”, diz Janete, para explicar quantas mudanças o projeto impulsionou. Ela conta que, enquanto a FCJA pensava em formas de desenvolver o Acesso Cidadão, ficou sabendo de um projeto semelhante funcionando no Rio de Janeiro — o Praia para Todos, criado em 2008, a fim de tornar a orla um local democrático e inclusivo, que as pessoas com deficiência pudessem frequentar com a autonomia e dignidade que lhe eram devidas.
“Com o apoio do presidente da fundação, que, na época, era o Flávio Sátiro, uma equipe viajou para conhecer esse projeto de perto. Também fomos até o Museu Belas Artes de São Paulo, onde programas de arte e cultura para as PcD estavam sendo desenvolvidos. Tive a oportunidade de ver como os quadros eram adaptados para os deficientes visuais, como esses dois projetos tornavam os espaços acessíveis, e voltamos cheios de ideias”, lembra Janete.
Em João Pessoa, a proposta envolvia o melhor dos dois mundos: um projeto que, pela primeira vez, uniria lazer e esporte à arte e cultura. Com o suporte do Governo do Estado e da Prefeitura do Município, cerca de R$ 1 milhão foi investido em obras, para tornar as dependências da FCJA acessíveis para todos os cidadãos. O acesso ao mar veio com a aquisição de cadeiras anfíbias — equipamentos flutuadores com rodas especiais, projetados para permitir que pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida acessem praias e piscinas — passeios de caiaques adaptados, partidas de vôlei sentado na areia e outras atividades recreativas.
Festas temáticas, como forró em período de São João, e oficinas de modelagem com argila para deficientes visuais, também foram incluídas no projeto e acontecem, ocasionalmente, dentro da fundação.
Pouco a pouco, o Acesso Cidadão foi encontrando formas de eliminar os obstáculos que impossibilitavam o acesso das PcD aos espaços públicos da capital, com o objetivo de garantir que todos os indivíduos teriam um meio para se relacionar com seu ambiente de vida. Nas palavras redigidas no texto inicial do projeto, quando ele foi proposto: “Uma sociedade inclusiva não admite preconceitos, discriminações, barreiras sociais, culturais e pessoais”.
No entanto, o projeto encontrou desafios que iam além das mudanças estruturais: para garantir uma sociedade verdadeiramente inclusiva, também é preciso passar por uma mudança na mentalidade social — fator que, ainda hoje, dificulta o acesso das PcD a espaços que pertencem a elas por direito. Em agosto de 2019, por exemplo, um grupo de moradores da orla do Cabo Branco entrou em contato com parlamentares de João Pessoa, na tentativa de proibir o projeto de levar pessoas com deficiência à praia, sugerindo que o Acesso Cidadão não estaria “pintando um quadro bonito para a vizinhança”. A prefeitura repudiou a atitude e garantiu a continuidade do projeto, mas o alerta foi aceso para a discriminação e o preconceito.
Janete rememora a tentativa de boicote com indignação. “O que nós fazemos é o contrário de ‘enfeiar a praia’. São inúmeras as pessoas que, dizem, nunca tinham pensado em entrar no mar antes do projeto. O objetivo é melhorar a qualidade de vida das pessoas com deficiência, seja através da prática de atividades físicas e recreativas, seja pela possibilidade de socialização”, fala. Segundo ela, o projeto ajuda a formar e fortalecer vínculos comunitários e familiares, promovendo um ambiente em que pessoas com e sem deficiência podem se divertir juntos, no mar, na areia e sob as tendas erguidas todo sábado, pela prefeitura de João Pessoa, que fornece um lanche para os participantes terem um momento de conversa e relaxamento. “Na verdade, isso é lindo”, ressaltou Janete.
Nacionalmente premiado por promover a inclusão social, o Acesso Cidadão, hoje, recebe a visita de representantes de instituições de outros estados, procurando conhecer o projeto mais de perto para replicá-lo. “Compartilhamos nossa experiência com prazer, porque temos um objetivo em comum, de levar acessibilidade ao máximo de pessoas”, disse Janete.
Para Genilson Machado, coordenador da parte de Esportes e Lazer do projeto, o Acesso Cidadão é a realização de um sonho. Apaixonado pela praia e por esportes como handebol e surfe, quando tinha 19 anos, ele sofreu um acidente durante um mergulho em uma piscina de clube, que o deixou tetraplégico. A partir daí, foram 24 anos para que, em 2012, Genilson pudesse voltar a se banhar no mar — um processo que exigiu muita força de vontade e a recuperação do amor-próprio.
Depois do acidente, a primeira vez que Genilson entrou no mar foi por meio do Acesso Cidadão, que hoje ele coordena. Daí vem a determinação de fazer com que o projeto se estenda e dure para sempre, objetivo pelo qual Genilson trabalha, junto à sua equipe da AC Social, a fim de proporcionar o mesmo prazer que ele obteve a outras pessoas. “É sobre transformar a praia, que é comunitária, em um espaço acessível”.
“Para mim, enquanto usuário e coordenador, o que o Acesso Cidadão promove é saúde em todas as formas: social, física e mental. Esse é só o começo de uma orla inclusiva, um local em que todos, sem exceção, vão poder desfrutar da liberdade de ir e vir”, ele comenta, destacando sobre o quão satisfatório é ver o projeto funcionar com o amparo de tantas mãos.
As reuniões do projeto começam às 8h e se estendem até o meio-dia. Embora um membro da Fundação Casa de José Américo esteja sempre presente para anotar o nome e número para contato dos novos integrantes, não é necessário fazer nenhum cadastro para participar das atividades. Segundo Janete Rodriguez, “chegou, é atendido!”. Ainda que o foco do projeto esteja nas pessoas com deficiência, a equipe que promove o Acesso Cidadão entende que acessibilidade é uma necessidade de diversos públicos, assim também recebe idosos, crianças com câncer e qualquer pessoa cuja participação plena em espaços públicos esteja sendo obstruída.
Segundo Janete, faça sol ou chuva, o coletivo está na orla, bem em frente à fundação: “Todos fazem questão. Como armamos tendas para nos proteger do sol, também as usamos em dias de chuva. Ficamos abrigados sob elas, lanchando e conversando, mas ninguém deixa de vir”. Assim, o lugar que o projeto conquistou se torna um espaço de interação, onde as pessoas podem exercer sua plena cidadania.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 13 de dezembro de 2025.
