“Eu marcharei na tua luta”. As palavras da ativista campesina Elizabeth Teixeira, paraibana que completou, anteontem, 100 anos de idade, deram o tom do Festival Cultural da Memória Camponesa, que, desde o último dia 13, celebra esse centenário com ações socioculturais, no Memorial da Ligas Camponesas, situado no Distrito Barra de Antas, no município de Sapé. Ontem, além de promover a Marcha da Memória Campesina e a inauguração de uma exposição de fotos de Elizabeth, os organizadores do evento entregaram a representantes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) um abaixo-assinado que reivindica o tombamento do imóvel onde funciona o Memorial.
A grade do festival, ontem, foi iniciada com uma apresentação artística do coletivo sapeense Casaca de Couro, seguida de um pequeno show do cantor Adeildo Vieira. Comentando o legado de Elizabeth além das lutas políticas que encampou, Adeildo afirmou que esse trabalho transborda a atuação junto ao campesinato: “Tudo o que ela viveu também faz parte da cultura e da minha formação como artista e como cidadão. Fora que ela veio do meio rural, onde a cultura popular é viva. No documentário ‘Cabra Marcado para Morrer’ [que conta sua história de vida], ela mesma canta um coco, como expressão de si própria”.
Em seguida, foram realizados dois lançamentos literários. O primeiro deles foi “Eu Marcharei Na Tua Luta: a Vida de Elizabeth Teixeira”, organizado pelas docentes Lourdes Maria Bandeira, Neide Miele e Rosa Maria Silveira, a partir de relatos da própria ativista; essa é a terceira edição da obra. No evento, as autoras foram representadas por Lúcia Guerra, professora aposentada da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). “Elas viram que não era possível deixar isso tudo sem registro e, a partir de 1984, começaram a gravar depoimentos de Elizabeth, onde ela aparecia. Depois, fizeram algumas entrevistas na casa dela”, detalhou Lúcia.
O segundo livro é “Memória Camponesa: as Ligas Camponesas na Paraíba”, que perfaz a transcrição de seminário ocorrido, em 2006, na Assembleia Legislativa da Paraíba (ALPB), e que reuniu, à época, sobreviventes da repressão contra os trabalhadores do campo — incluindo Elizabeth. A obra foi editada por um grupo de pesquisadores da UFPB, dentre os quais, Ivan Targino. “O seminário foi um momento de intensa emoção para todos os que participaram. Havia pessoas que não se encontravam há 40 anos, como a professora Ofélia Amorim e um camponês que lhe entregou um buquê na sua formatura, em 1963”, rememorou Ivan.
Fechando a programação da manhã, a cordelista Juliana Soares trouxe a público o folheto “Elizabeth Altina Teixeira, 100 Anos de Vida e Luta”, que conta, em versos, a trajetória da paraibana na salvaguarda dos camponeses e de sua própria família, esfacelada após a morte do esposo João Pedro Teixeira, também ativista. Juliana destacou o pioneirismo da sapeense ao assumir, no lugar do marido, a liderança dos trabalhadores na região. “Cresceu firme e decidida / E, pela vida marcada, / Aprendeu desde menina / Ser valente e dedicada / Na lida do dia a dia / Forjou sua travessia / Em cada luta travada”, evoca uma das estrofes.
À tarde, houve a estreia oficial da exposição “Elizabeth Teixeira: 100 Faces de Uma Mulher Marcada Para Viver”, que reúne fotos da líder campesina e a reprodução de documentos e artefatos de época, como a certidão de óbito de João Pedro. A agenda vespertina foi encerrada com a entrega de um abaixo-assinado a representantes do Iphan na Paraíba: mil registros foram coletados com o ensejo de transformar o Memorial das Ligas Camponesas em patrimônio histórico do estado. Receberam o documento o superintendente, Emanuel Braga, e a diretora de Articulação, Márcia Lucena.
A família de Elizabeth se fez presente na conclusão da programação. Uma comitiva de 23 parentes da ativista veio do Rio de Janeiro para celebrar o centenário e se inteirar do trabalho da matriarca. A neta Marta Teixeira Pires Gomes, que carrega o nome utilizado pela avó, quando teve que mudar de identidade, para fugir das perseguições que sofreu, entre anos de 1960 e 1970, revelou que tatuou o rosto da avó no braço para que não pudesse esquecê--la “Foi aqui que meu avô saiu e não voltou mais. Pensar que todos aqueles filhos ficaram desamparados me deixa muito emocionada. Mas também é lindo ver isso aqui tão repleto de gente”, asseverou.
Turistas e população local unem-se na Marcha da Memória
A reportagem do Jornal A União acompanhou, também, a Marcha da Memória Campesina, que partiu do Centro de Barras de Antas rumo ao Memorial, a alguns metros dali. O percurso reuniu centenas de pessoas, tanto da própria localidade como de outros estados, a exemplo da bibliotecária Ana Lagostera, que veio de Campinas, no estado de São Paulo, apenas para participar do festival. “Conheci Elizabeth assistindo o ‘Cabra Marcado’. A partir daquele dia, passei a carregar, nas minhas mesas de trabalho, uma fotografia dela, desejando conhecê-la. Na quinta-feira, eu realizei o meu sonho: consegui vê-la na visita que ela fez ao Memorial”, relatou Ana Lagostera.
Já a estudante Isabelly Vitória de Lima, de 13 anos, veio com os professores e os colegas da Escola Municipal de Ensino Fundamental Edmilson Baltazar de Mendonça, da cidade de Mari. No ano passado, os alunos dessa instituição de ensino fizeram um trabalho em vídeo sobre Elizabeth, João Pedro e as lutas campesinas; os adolescentes vieram, em 2025, fazer coro à marcha: “A gente pesquisou e falou um pouquinho sobre a vida deles. Eu gostei muito de tudo, de conhecer o Memorial, a casa onde a família morou. Foi uma experiência única e gratificante. A história deles me ensinou que nunca devemos ter vergonha de quem nós somos”.
O professor aposentado Alder Júlio Ferreira Calado não deixou que os problemas de visão o impedissem de fazer parte do evento. Atuou como docente do antigo Departamento de Metodologia da Educação (DME) da UFPB, mas o interesse em pesquisar os movimentos sociais partiu de sua própria imersão em alguns deles, ainda na adolescência: “Desde essa época, eu me sinto um militante, um aprendiz, inclusive do que foi e do que continua sendo a luta campesina. O centenário de Elizabeth nos faz exercitar a memória histórica desses oprimidos, que tiveram um papel decisivo no século 20, para combater o destroçamento que o Golpe de 1964 trouxe”.
Josilene da Silva Oliveira, trabalhadora do campo e natural de Sapé, tomou ciência da importância de Elizabeth quando seus pais passaram a integrar o assentamento rural que luta pela desapropriação de parte da Fazenda Antas, alcançada mediante decisão do Supremo Tribunal Federal (STF): “Meu pai e meu avô sofreram várias violências durante esse processo. Mas a terra é vida, é de onde a gente tira o nosso sustento. Conheci a homenageada quando a equipe da Pastoral da Terra a visitava, mensalmente. Um dia, ela me pediu para que alfabetizássemos os companheiros, clamou por reforma agrária e me disse: ‘Nunca esqueça a velha Elizabeth’”.
A presidente do Memorial das Ligas Camponesas, Alane Lima, também herdou da família a paixão pelo campo e a tarefa de cuidar do espaço, que um dia abrigou o casal Teixeira e seus 11 filhos. Ela assinalou que Elizabeth é um ícone feminista, transformando em prática aquilo que muitos apenas teorizam: “Esse Festival serve para materializarmos a clássica frase dela, sobre continuarmos a luta, dita quando João Pedro faleceu, em 1962. A reforma agrária ainda não aconteceu, mas, para a alcançarmos, é preciso que haja unidade entre a cidade e o campo e de todos os movimentos sociais, que têm como pauta principal esse ensejo”.
A programação do Festival Cultural da Memória Camponesa continua hoje, com a expectativa da presença de João Pedro Stedile, dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Será realizada, no Memorial, uma feira cultural de agricultura familiar camponesa, às 10h. A grade se estende à tarde, a partir das 15h, na Praça de Eventos Dr. João Úrsulo, no Centro de Sapé, com os shows de Os Três do Norte; Oliveira de Panelas; Banda Santa Cecília; Coral Voz Ativa; e Sandra Belê.
*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 17 de fevereiro de 2025.