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Na Paraíba

170 mil famílias vivem do campo

publicado: 07/08/2023 09h35, última modificação: 07/08/2023 15h23
Série de reportagens premiada nacionalmente mostra que pequenos produtores respondem por 90% da produção
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Para a série, foram entrevistados mais de 20 personagens, dos quais, pelo menos 15 agricultores de todo o estado - Foto: Secom-PB
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Marcos Thomaz (E), da Rádio Tabajara, que integra a EPC, durante premiação - Foto: Divulgação
Plantação de milho Foto Secom PB.jpeg
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por Lucilene Meireles e Marcos Thomaz*

“Na Paraíba o Agro não é Tech, mas é tudo... para muitos”. Este é o título de uma série assinada pelo repórter Marcos Thomaz, da Rádio Tabajara, integrante da Empresa Paraibana de Comunicação (EPC), e vencedora do Prêmio Banco do Nordeste de Jornalismo 2023. Na reportagem, é possível descobrir que, muito além dos comerciais de tv e outdoors, na Paraíba, o agro não é pop, não é tech, mas é tudo para muitos, como ressalta o título da produção. São 170 mil famílias envolvidas na atividade no campo, o que representa cerca de meio milhão de paraibanos que fazem desta missão a fonte de renda e sobrevivência.

O trabalho árduo no campo garante alimentos saudáveis na mesa do paraibano. Aos poucos, agricultores e agricultoras se integram às tecnologias, mas a Paraíba ainda é um estado baseado na agricultura familiar, que coloca a comida na mesa de 90% dos paraibanos. Por outro lado, o panorama do agronegócio paraibano em números gerais ainda é modesto comparado a outros setores. Apenas 4,5% de toda riqueza produzida vem do campo. No Brasil, a participação do agro no Produto Interno Bruto (PIB) beira os 30%, mas, mesmo ainda tímida em cenário nacional, a agricultura paraibana dá sinais de avanço com crescimento de 20% na última década, o que projeta um futuro promissor.

O secretário de Desenvolvimento da Agropecuária e da Pesca, Hugo Vieira, aposta na consolidação dessa tendência de crescimento. “Dois mil e vinte e três vai ser o ano do agro na Paraíba. Nós temos procurado dialogar com o setor, aproximando a Sedap de quem produz, seja o homem do campo, seja o produtor rural, seja a agroindústria que é extremamente importante, a gente precisa planejar desde a produção, desde a criação. No início desse novo governo foram tomadas algumas medidas econômicas, feitas algumas ações e editados alguns decretos que visam exatamente esse apoio ao setor produtivo”.

Não esperava me deparar com um número de que 90% da produção que chega à mesa dos paraibanos, dos alimentos, são oriundos da agricultura familiar

O agricultor José Enildo nasceu no município de Araçagi, no Agreste paraibano. “Tenho um carro velho e uma moto velha que ando nela. Quando dá um problema, eu sei onde é o defeito. É como o roçado. Você está cuidando ali, está todo dia dentro do seu roçado, está vendo o que está faltando. Um pé de abacaxi com cochonilha, a gente conhece logo. Arranca o pé e joga fora. Ela vai passando, passando, passando e, daqui a pouco, vamos ter mais o quê?”, observou.

Neto de agricultores começou a trabalhar na lavoura aos oito anos de idade e hoje, aos 48, continua tirando da mesma terra dos ancestrais o alimento e o sustento familiar. O abacaxi é o produto que coloca a agricultura paraibana na sua melhor posição de destaque nacional. A Paraíba é o segundo maior produtor brasileiro da fruta. Em relação à cana-de-açúcar, o ranking nacional deixa a Paraíba como 9º maior produtor do país. Além de Araçagi, Itapororoca contribui para elevar a produção do abacaxi. Santa Rita, na Região Metropolitana da capital, é líder no segmento.

“Na região dos tabuleiros costeiros, principalmente próximo a Itapororoca, Araçagi, temos um dos melhores solos para o cultivo do abacaxi. E, diga-se de passagem, não é só o solo. É a posição geográfica em que nos encontramos que proporciona uma insolação de uma maneira que o brix do abacaxi, a doçura, é o melhor que tem. A gente tem essa particularidade”, constatou o técnico da Empresa Paraibana de Pesquisa e Extensão Rural (Empaer), George Firmino.

A Empaer possui 223 escritórios na Paraíba, trabalhando com extensão rural e assistência técnica há mais de 60 anos. Por meio dessa parceria, José Enildo conseguiu comprar seu primeiro trator.

Acesso a crédito é fundamental

Com informações sobre o acesso ao crédito, agricultores e agricultoras começaram a perceber a importância das linhas de crédito para o desenvolvimento de suas culturas. Essa sustentação, uma estrutura mais sólida ofertada, propiciou uma outra relação entre o produtor e o mercado, como afirma Sara Maria, agricultura de Cubati.

“Se você tem políticas públicas que garantem a compra da sua produção, você vai produzir mais animada ainda porque tem a certeza de que tem para onde vender. Se eu estou produzindo o feijão, o jerimum, a melancia, o milho, e eu sei que eu tenho o PAA, o PNAI, as feiras da agricultura familiar, tenho as casas de economia solidária que são um espaço no qual eu posso comercializar, eu vou produzir com segurança porque sei que vou ter como escoar meu excedente. O que falta é exatamente isso, essas políticas que existem serem fortalecidas ou ampliadas para termos autonomia de dizer que não vamos vender. Quando o agricultor tem opção, a situação é outra”.

O desconhecimento sobre a oferta e possibilidade de acesso a crédito ainda é um entrave para o homem do campo desfrutar das linhas de crédito e benefícios, como avalia Keke Rosberg, gerente executivo do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), uma das instituições financeiras nacionais com maior atuação no desenvolvimento econômico do campo.
“Muitos têm até conhecimento dessas linhas de crédito, mas ficam um pouco receosos com a instalação das placas (solares) até que eles participam normalmente de um dia de campo ou vizinho deles faz a instalação e eles veem funcionando na prática”, observou o gerente. Ele ressalta que o BNB possui uma série de linhas de crédito.

O produtor de queijo Manoel Alves, de Salgado de São Félix, não conhecia os benefícios das linhas de crédito. O desconhecimento sobre possibilidades tecnológicas, a descrença e o medo histórico de endividamento fez com que ele recusasse uma proposta de energia alternativa com uso de placas solares. Porém, foi convencido a fazer o financiamento através do Banco do Nordeste o que levou a uma economia de quase todo o consumo mensal.

“Quem primeiro colocou placa aqui em Salgado de São Félix fui eu. Uma economia grande, porque hoje em dia, se eu estivesse pagando energia, seria mais de 1.500 por mês. Tenho quatro freezers, três geladeiras, três ar-condicionados e bebedouro. Hoje, estou pagando mais porque consumi mais do que ela gera. Estou moendo muita ração. Comprei as placas e ainda tirei financiamento para as vacas”, relata. Menos de dois anos depois, mais do que triplicou o rebanho e a produção. Hoje são 100 cabeças de gado que multiplicaram a produção diária de leite de 200 litros para 700.

Outras atividades de destaque na Paraíba e que também são beneficiadas pelas linhas de crédito são a coureira, produção de algodão, flores e leite na Paraíba. O secretário do Desenvolvimento da Agricultura e da Pesca, Hugo Vieira, diz que a Paraíba está com um projeto de criação de queijarias por todo Sertão e Cariri para absorver a produção de leite, que também é incentivada pelo Estado. Até junho, será lançado um grande programa de forragem no Sertão e Curimataú.

Protagonismo feminino em evidência

O protagonismo feminino na agricultura da Paraíba também se sobressai. Cleide Rodrigues, agricultora de 57 anos, da cidade de Itapororoca, é um exemplo. Grávida aos 16 anos, foi colocada para fora de casa pelo pai e obrigada a trabalhar como castigo. Acabou tendo o filho em meio a uma plantação de abacaxi, sob chuva e relâmpagos. “Fui feliz e sou até hoje”. Abandonada pelo marido no quinto filho, continuou trabalhando no abacaxi e na cana. O novo companheiro ajuda na lavoura e contribuiu na criação dos sete filhos. Mas, ela é quem manda. “Quem faz a feira aqui sou eu”.

Claudineide Rodrigues, do movimento Mulheres Negras do Campo, do município do Conde, transformou o ceticismo de muitos num estímulo a mais para provar que era capaz. Algumas integrantes do movimento desacreditaram que a ideia era possível. Das 25 que começaram, apenas nove permaneceram. Hoje vivem o melhor momento do coletivo.

“Sabe o que eu gostaria de dizer às pessoas? Isso daí é aquilo que você foi lá e não deu valor”. E completou: “Nós somos capazes de mudar a história de uma comunidade”. Na comunidade, funciona a cozinha comunitária onde as mulheres produzem os alimentos.

Como foi feita a reportagem

“Eu idealizei essa matéria pensando em fazer uma radiografia do agro na Paraíba, desde as estruturas macro, mais empresariais e os sistemas mais robustos, modernizados, técnicos, à agricultura familiar que eu sabia que era eminente aqui na Paraíba, mas não esperava me deparar com um número de que 90% da produção que chega à mesa dos paraibanos, dos alimentos, são oriundos da agricultura familiar. Esse número realmente é espantoso”, relata o jornalista Marcos Thomaz, autor da série.

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Para a série, foram entrevistados mais de 20 personagens, dos quais, pelo menos 15 agricultores de todo o estado - Foto: Secom-PB

Ele conta que, da ideia inicial, o projeto foi ganhando corpo, se avolumando. Convidou Fernanda Gonçalves para participar da produção. Thomaz lembra que havia algumas delimitações iniciais. “Ela começou a fazer uma prospecção muito boa de personagens e, dali, íamos preenchendo lacunas, se estava precisando de mais personagem com essa característica”.
Àquela altura, as histórias de vida de cada um dos entrevistados começaram a ganhar corpo. “Muitas vezes, até se sobrepõem à característica econômica inicial porque é inevitável nos envolvermos. E aí, se humaniza esse material. Uma dessas personagens pariu um filho em meio a uma plantação de abacaxi e, dessa situação, ela conseguiu chegar ao estágio de criar seis filhos e 18 netos por meio da agricultura”, relata.

Essa agricultora foi expulsa de casa pelos pais, teve esse filho na plantação de abacaxi e, com muita dedicação e empenho, conseguiu construir uma história de superação. Além dela, foram entrevistados mais de 20 personagens, dos quais pelo menos 15 agricultores de todos os recantos do estado. “Sobre o prêmio, acho que foi até algo muito comentado nas falas de todos os vencedores e algo importante de enaltecer é a relevância de uma instituição como o Banco do Nordeste, com tanta capilaridade, com tanta representação nacional, regional, dedicar, há 40 anos, uma atenção tão especial ao jornalismo que, ultimamente, vemos tão desgastado, tão desprestigiado, tão atacado, agredido”, comenta.
Ele observa que todo repórter sabe da relevância da atividade jornalística, do quanto esse trabalho é fundamental para uma sociedade democrática. “Me sinto muito honrado em poder ter sido contemplado em um prêmio dessa dimensão”.

Além de Marcos Thomaz, responsável pelo roteiro, reportagem e supervisão geral e, Fernanda Gonçalves na produção e pesquisa, a reportagem teve edição de Marcos Pack e montagem final de João Lira.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa de 6 de agosto de 2023.