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TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS

Ato salva vidas e permite recomeços

publicado: 16/09/2024 08h44, última modificação: 16/09/2024 09h11
Número de cirurgias feitas na Paraíba cresceu 35%, em relação ao ano passado; conscientização foi essencial para alta
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Em março deste ano, Ramon (de camisa verde) se tornou a primeira pessoa a receber um transplante de coração na Paraíba | Foto: Divulgação/Secom-PB

por João Pedro Ramalho*

O que une a educadora física Maria Luiza Pessoa e o ex-motorista Ramon Fernandes, além de morarem em João Pessoa, é o fato de estarem nas duas pontas de um mesmo sistema: a doação e o transplante de órgãos. Enquanto a profissional de saúde autorizou, junto com o pai e o irmão, a doação dos rins, do fígado e das córneas de sua mãe, falecida em 2021, Ramon foi a primeira pessoa a receber um transplante de coração na Paraíba, em 2024. Com isso, ele integra, ainda, o grupo dos 210 pacientes transplantados no estado, nos primeiros nove meses deste ano.

Conforme a Central de Transplantes da Paraíba, de janeiro a setembro deste ano, o número de transplantes foi 20% maior que o registrado no mesmo período do ano passado, no estado. Até agora, foram 210 transplantes, sendo 153 de córnea, seis de coração, 16 de rim, 26 de fígado e nove de medula óssea. Já em 2023, foram 175 transplantes, distribuídos em 125 de córnea, seis de coração, 23 de rins e 17 de fígado e quatro de medula óssea.

O número de doações também aumentou. No ano passado, também nos nove primeiros meses, foram 29 doadores efetivos de multiórgãos, 88 órgãos captados e 37 disponibilizados para outros estados. Neste ano, os dados mostram 38 doadores efetivos, 105 órgãos captados e 52 levados para a Central Nacional de Transplantes.

Uma explicação para o avanço nas cirurgias está no aumento do número de potenciais doadores e de doadores efetivos. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), na Paraíba, 129 pessoas foram avaliadas como potenciais doadores de órgãos no primeiro semestre deste ano, enquanto 27 delas tornaram-se doadoras efetivas. Nos seis primeiros meses de 2023, tais categorias tiveram 117 e 17 pessoas, respectivamente.

A cardiologista Tauanny Frazão explica a diferença entre os dois grupos e como a doação dos órgãos é feita. “Potenciais doadores são pessoas que faleceram em condições que permitem a doação de órgãos — ou seja, que fecharam o protocolo de morte encefálica. Nesses casos, o próximo passo é a equipe especializada avaliar se aquele órgão é viável, pois cada especialista tem seus próprios critérios. Já os doadores efetivos são aqueles cujos órgãos foram aceitos e, portanto, foram, de fato, retirados e transplantados com sucesso”, elucida a médica, que também é coordenadora do Ambulatório para Transplante Cardíaco do Hospital Metropolitano Dom José Maria Pires.

Ao lidar com o luto da família, é comum enfatizar o aspecto de ajudar outras vidas e o legado que a pessoa falecida pode deixar   --   Tauanny Frazão

Uma característica comum aos transplantes de órgãos na Paraíba, neste ano, é a morte encefálica de todos os doadores. Nesses casos, a legislação brasileira condiciona a doação à autorização da família do paciente falecido. Contudo, é comum haver negativa por parte dos parentes. “A resistência de alguns familiares pode estar ligada ao desconhecimento do processo, à desinformação sobre o conceito de morte encefálica, a questões culturais e religiosas ou ao impacto emocional da perda recente. Por isso, durante a entrevista familiar, profissionais capacitados utilizam várias estratégias, como o esclarecimento sobre esse tipo de morte e explicações sobre o processo de doação. Ao lidar com o luto da família, é comum enfatizar o aspecto de ajudar outras vidas e o legado que a pessoa falecida pode deixar”, relata Tauanny.

Para a médica, é importante tornar a doação de órgãos um assunto mais debatido na sociedade, por meio do investimento em campanhas educativas. Isso contribuiria para o avanço no número de transplantes. Ela também defende outros caminhos, na busca por esse objetivo. “É fundamental aprimorar a capacitação de profissionais de saúde que conduzem a entrevista familiar; incentivar o debate sobre o tema nas famílias, para que o desejo de doação seja conhecido; e melhorar a infraestrutura hospitalar, para garantir que os potenciais doadores sejam adequadamente identificados e cuidados”, afirma.

Outra modalidade possível de doação é a realizada por pacientes vivos. Ela foi registrada em 16 estados do país e no Distrito Federal, entre janeiro e junho deste ano. A cardiologista do Hospital Metropolitano aponta em que situações isso acontece. “Pessoas vivas podem doar órgãos, como um dos rins, parte do fígado, parte do pâncreas ou medula óssea, desde que sejam compatíveis com o receptor e estejam em boas condições de saúde. Essas doações vivas ocorrem principalmente entre familiares ou em casos de doadores altruístas”, conta Tauanny.

Fazer o bem, mesmo após a morte, é o principal mote da doação

Luiza e o irmão ladeiam a mãe, que se tornou doadora | Foto: Arquivo Pessoal

Em julho de 2021, a mãe de Maria Luiza Pessoa, Maria Risomar, deu entrada na Unimed de João Pessoa para a retirada de um tumor na cabeça. No entanto, a cirurgia teve uma complicação e Maria Risomar ficou internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) por 15 dias. Depois desse período, a família recebeu o diagnóstico de morte encefálica.

A educadora física rememora quando ela, o seu irmão, Pedro Paulo, e o seu pai, Marcone, souberam da possibilidade de doar os órgãos de Risomar. “A equipe nos chamou no hospital. Já imaginávamos o que seria, porque eles tinham comentado que abririam um protocolo para avaliar a morte encefálica. Por isso, no dia seguinte, a equipe do transplante conversou sobre essa possibilidade e explicou que nós três precisaríamos estar de acordo. Caso um de nós não concordasse, a doação não poderia ser realizada. Mas, como isso já era algo muito certo, que tanto ela quanto nós gostaríamos [de fazer], concordamos na mesma hora”, conta.

No relato de Maria Luiza, fica evidente que a família não teve dificuldade em aceitar a doação porque o tema já não era um tabu em casa. Depois dessa atitude, ela acrescenta que outros familiares passaram a falar sobre o assunto, monstrando-se abertos a manifestar o desejo pela doação de órgãos após a morte.

Para a educadora física, que também já se declarou doadora, a decisão tomada em julho de 2021 foi uma forma de honrar a memória da sua mãe e beneficiar outras pessoas. “Ela sempre foi uma mulher que gostava de ajudar e de fazer o bem, da forma que pudesse e a quem pudesse. Por isso, nosso pensamento foi: se ela pode ajudar até mesmo depois da morte, e se outras pessoas podem ter uma nova oportunidade por causa disso, que assim seja”, revela.

Depois de um ano e meio de espera, um novo coração começou a bater

Já fazia um ano e seis meses que Ramon Fernandes estava internado no Hospital Metropolitano, à espera de um coração que pudesse lhe restabelecer a vida normal. Ele até perdeu a esperança de que isso aconteceria. Foi então que, em março deste ano, ele foi abordado de maneira “estranha” por uma enfermeira. “Eu já estava há muito tempo dentro do hospital, mas essa enfermeira chegou para mim e me perguntou se eu tinha me pesado. Eu fiquei com um pé atrás e disse, para mim mesmo: ‘isso é o meu coração que está chegando’. No dia seguinte, veio uma notícia boa. Chegou uma médica e perguntou: ‘Ramon, você está preparado? Seu coração chegou e hoje vai ser o seu transplante’. Nesse momento, eu fiquei muito feliz. Só pensei na minha família e nos meus três filhos”, relata, sem disfarçar a emoção na voz.

Antes da internação, Ramon passou mais de quatro anos lidando com vários sintomas, como cansaço, inchaço nas pernas e dificuldade para dormir deitado, já que a única posição em que conseguia dormir era sentado em uma cadeira. Os médicos descartaram entupimento nas veias, doença de Chagas e outros possíveis cenários, até entenderem, dois anos atrás, que o coração do motorista cresceu devido a uma infecção desconhecida. Desde então, ele entrou na fila para o transplante — possível graças à doação de um paciente de Campina Grande.

Ramon conta que, durante o seu período de internação, ele foi acompanhado por sua mãe, Silvana, e sua avó, Luiza, as quais tinham o sonho de vê-lo bem. Infelizmente, elas faleceram em agosto, cinco meses após a cirurgia. Ramon, então, encontra consolo na chance que ambas tiveram de presenciar a realização de seu maior desejo. “Para as duas e para todos da família Fernandes, esse transplante significou esperança. Quando chegou o coração, minha mãe falou, em uma entrevista: ‘Eu estou muito feliz pelo meu filho, porque hoje ele vai receber um novo coração e vai viver’. E, realmente, eu estou vivendo”, garante.

*Matéria publicada originalmente na edição impressa do dia 15 de setembro de 2024.